A Destruição Física e Mental de Guts: Análise Psicológica sobre o Protagonista de Berserk
A raiva é uma emoção necessária, pois algumas coisas só podem ser resolvidas através dela. Hoje, vamos refletir sobre Guts, o protagonista de Berserk, um dos animes mais traumáticos e perturbadores de todos os tempos. Guts é um personagem que retrata a luta contra o próprio determinismo, presente no mundo de Berserk. Ele é aquele que luta contra o que foi determinado pelas mãos do destino, pelas mãos de Deus. A história de Berserk é a história de Guts.
Para entender Guts, é preciso primeiro entender como funciona o mundo de Berserk. Berserk é um anime que se passa na Idade Média, em um local muito semelhante à Europa medieval. Uma época em que a igreja é muito influente, as terras pertencem aos grandes senhores feudais, e a maior parte da população é extremamente pobre e vulnerável. As pessoas são acusadas de bruxaria e executadas, e o mundo é tomado por constantes guerras.
Além disso, o mundo de Berserk acrescenta a esse cenário elementos de fantasia, como seres mágicos, elfos, demônios e deuses. Ou seja, além das constantes guerras, as pessoas que vivem nesse mundo lidam com criaturas mais fortes que elas e, em muitos momentos, com situações incontroláveis. Isso cria na história e nos personagens um cenário de desesperança, um sentimento muito presente na vida dos personagens dessa história.
Em meio a tudo isso vive Guts, um jovem solitário que trabalha como mercenário nas guerras e que não possui objetivos de longo prazo, focando-se apenas em um dia de cada vez. Basicamente, o oposto de Griffith. Em vários aspectos, Guts é um personagem livre, pois, ao contrário do Falcão Negro, Guts não se importa com a opinião dos outros sobre ele. Guts também poderia ser uma espécie de essência da verdade. O verdadeiro é sempre melhor que o falso; a verdade é sempre melhor que a mentira. Mas, para muitas pessoas, não é bem assim.
Guts é o que é; ele não finge ser quem ele não é. Por isso, para mim, ele é a essência da verdade no anime. Muitos de nós, em alguns momentos — e eu me incluo nisso — preferimos escolher a expressão não real da verdade. Preferimos a anestesia do que a dor que precisa ser sentida. Friedrich Nietzsche dizia que o valor de um homem é determinado pela quantidade de verdade que ele é capaz de tolerar.
Guts também é um personagem ambíguo, o que o torna bastante real. Ele é o que é; ele não se orgulha disso, mas, ao mesmo tempo, ele não esconde. Ele encara os fatos, tenta encontrar o caminho e sofre as consequências disso. A verdade é o melhor caminho quase sempre, mas a verdade traz consequências também. Porém, embora a mentira cause menos dor no começo, ela traz mais dor a longo prazo. Já a verdade causa dor no início, mas ela promove alívio e significado depois.
E Guts, sendo verdadeiro, também se torna verdadeiro aos seus sentimentos, a sua raiva. Por isso, em muitos momentos, Guts também é cruel. Isso é praticamente impossível de não acontecer no universo de Berserk. Ser muito bonzinho ou passivo poderia ser um grande problema. Como cita o pesquisador Van Dongen, no mundo existem pessoas que têm seus circuitos empáticos prejudicados, pessoas que têm muita dificuldade de se colocar no lugar do outro. Embora pessoas assim sejam a minoria, nem todas vão machucar alguém por causa disso. Porém, existem pessoas que se satisfazem e muito com a dor alheia. Então, é natural que não podemos agir da mesma forma com todo mundo.
Guts trata extremamente mal seus vilões, tanto internos quanto externos. Ele mesmo sofreu com esses vilões externos que causaram marcas permanentes nele. Guts é o personagem isolado e é o personagem que não gosta que seja tocado; ele não quer nenhum tipo de proximidade com as pessoas. Então, para quem está do lado de fora, apenas vê essa parte fria do Guts, o que não é necessariamente verdade.
Apesar da marcante frieza de Guts nas batalhas, ele é um personagem que passou por diversas situações perturbadoras durante a história, e tudo isso começa pelo seu nascimento. Guts nasceu do cadáver de sua mãe, que havia sido enforcada. Em meio a toda aquela lama e sangue, uma mulher chamada Sis o encontra e, junto com seu marido Gambino, acaba criando o garoto. Sis cria Guts como se fosse seu filho. Porém, esse amor de mãe que ele recebe dura muito pouco tempo, pois quando Guts tinha apenas 3 anos, sua mãe adotiva pega uma doença muito séria e acaba morrendo.
A partir daí, Guts começa a viver apenas com Gambino, que era um mercenário e precisava lutar para sobreviver. Gambino se torna a figura mais próxima de um pai que Guts teve ao longo de toda a história. Ele vivia com ele e confiava bastante em Gambino, mesmo não recebendo muito afeto dele. Guts queria que Gambino se orgulhasse dele nas batalhas e, por isso, se esforçava muito, tanto que começa a lutar com espadas maiores do que uma criança poderia suportar.
Por outro lado, Gambino, mesmo vivendo com Guts, possuía sentimentos ruins em relação a ele, pois acreditava que todos os infortúnios que havia passado eram devido ao fato de ter criado o garoto, que era um símbolo de azar, de algo ruim. Toda essa relação escassa de afeto entre Gambino e Guts é completamente quebrada no dia em que Guts é abusado e descobre que o homem responsável por vendê-lo por uma noite para um mercenário era justamente Gambino. Ou seja, aquele que ele mais confiava, aquele que ele mais se esforçava para agradar, foi um dos responsáveis pelo maior trauma que Guts até então tinha na vida.
Após descobrir toda essa situação, Guts, que já era tratado mal por Gambino, acaba matando sem querer aquele que o havia criado. Depois, ele é perseguido pelas pessoas do bando de Gambino e quase morto, mas consegue escapar. Essa é a infância de Guts, de alguém que sempre teve que se esforçar muito para conseguir o mínimo, além de conviver num ambiente totalmente estressante.
Como cita o pesquisador Dominique Fareri, o estresse crônico tem um efeito de encolhimento no córtex pré-frontal, a área do cérebro responsável pela memória e aprendizagem. O estresse também pode aumentar o tamanho da região da amídala, o que pode tornar o cérebro mais receptivo ao estresse. Em pessoas que passaram por estresse pós-traumático, o tamanho da amídala pode ser maior do que da população em geral. Isso faz com que a pessoa se torne mais reativa a ameaças, como se o alarme de incêndio apitasse para mais coisas, como se ele fosse mais sensível no geral.
Guts se torna bastante desconfiado das pessoas; ele demora muito tempo para confiar em alguém. Também podemos ver esse estado de alerta quando ele dorme com as armas, ou seja, o tempo todo, de fato, ele está em constante estresse. A primeira infância de Guts foi algo marcante e acabou definindo muito de como ele se comporta na vida adulta. As primeiras memórias de uma criança são implícitas, porque o cérebro não está desenvolvido o suficiente para codificar a memória explícita.
Memória explícita é o que geralmente pensamos quando pensamos em memória; é uma memória cognitiva que lembramos em nosso cérebro pensante. Este é o tipo de recordação que vivenciamos como lembrança. Um bom exemplo de memória implícita é subir em uma bicicleta e lembrar ativamente como pedalar, enquanto a memória explícita seria a lembrança de alguém ensinando a pedalar. Só que no caso de Guts, envolve tudo isso: memórias traumáticas.
Como é citado nesse estudo, memórias de trauma são frequentemente implícitas porque o trauma inunda nosso cérebro com cortisol, o hormônio do estresse, desliga a parte do nosso cérebro que codifica memórias e as torna explícitas. Nossas memórias implícitas podem ser como forças invisíveis em nossas vidas, nos impactando de maneiras poderosas. Quanto mais pudermos aprender sobre memórias implícitas, melhor poderemos nos entender e não deixar que nossas experiências e reações no presente sejam sequestradas pelo nosso passado.
Por causa da natureza dessas memórias implícitas, elas costumam ser acessadas de forma mais frequente e de forma inconsciente. E aí acontece delas causarem reações que, às vezes, nem entendemos. Por exemplo, ver determinado papel de parede pode lembrar uma pessoa de um quarto em que ela foi abusada quando criança, deixando-a assustada sem saber o porquê. Ou, como no caso de Guts, quando ele é tocado, isso remete ao que ele sofreu no passado. Ele associa e remete implicitamente ao que aconteceu com ele no passado. Então, para alguém tocar nele, para alguém criar proximidade nele, precisa de uma série de exposições até ele se sentir confortável.
Tendo que fugir dia após dia, Guts cresce sem uma espécie de propósito. Ele foi crescendo sem um sonho grandioso, apenas vivendo um dia de cada vez. Ele apenas quer lutar e seguir, porém com o peso de seu passado em suas costas. Guts era um mercenário, então ele não tinha muitas garantias. O que ele ganhava hoje não era garantido que ele ganharia amanhã; não era garantido nem que ele estivesse vivo amanhã. Era quase como se ele não pudesse ter planos.
Nesse momento, entra Griffith em sua vida. Guts entra para o bando de Griffith, o Bando do Falcão. Nesse bando, ele ganha uma nova perspectiva e também uma espécie de esperança. Agora, nesse ambiente mais previsível, de certa forma, ele podia ter alguns objetivos. De alguma forma, ele teria uma calmaria maior. Ou seja, de alguma forma, ele poderia se permitir criar um propósito.
Como mostra em um estudo da pesquisadora Kim, indivíduos que têm um forte senso de propósito e significado na vida tendem a ter melhor saúde mental, bem-estar geral e funcionamento cognitivo em comparação com aqueles que não têm senso de propósito. Um estudo descobriu que indivíduos com forte senso de propósito na vida eram melhores no gerenciamento do estresse e tinham um melhor sono do que indivíduos sem um forte senso de propósito. Ter um aspecto positivo e significativo na vida pode melhorar nosso funcionamento cerebral, incluindo a cognição e a memória.
De fato, a diferença de Guts antes de entrar para o Bando do Falcão e depois é bem grande. É no Bando do Falcão onde ele começa a ter finalmente esperanças pelas pessoas. É lá que ele encontra o mais próximo que ele teve de ter uma família. É lá também que, pela primeira vez, ele se apaixona. Basicamente, eram muitas memórias sendo criadas pela primeira vez em sua vida.
Guts já demonstrava em muitos momentos uma alta resiliência. Apesar de não ter propósitos, ele já conseguia se automotivar de forma muito fácil. Os combates, por si só, já eram extremamente recompensadores para ele. E Griffith com certeza percebeu isso. Essa característica de Guts chamou a atenção dele. Pessoas intrinsecamente motivadas são raras. Também é raro ficarmos intrinsecamente motivados com algo, principalmente com algo que faz bem a nós. Pessoas que são intrinsecamente motivadas a correr o fazem porque simplesmente amam o ato de correr em si.
E Guts tem isso relacionado a combates. Parece que intrinsecamente ele se motiva em batalhas, em lutar. Como cita o psicólogo Edward Deci, um dos maiores pesquisadores em Ciências Sociais do mundo, quando estamos intrinsecamente motivados, nos tornamos totalmente absorvidos pela atividade, vivenciamos o fluxo, perdemos a noção do tempo e obtemos satisfação genuína do processo em si. Assim, o prazer intrínseco geralmente leva a um melhor desempenho, persistência e um senso mais profundo de significado e realização em nossas vidas. A motivação intrínseca pode levar ao estado de fluxo e fazer você realizar atividades sem perceber o tempo passado, como é mostrado nesses estudos. Isso proporciona um senso maior de significado na nossa vida.
Só que não foram apenas coisas positivas que ele encontrou no Bando do Falcão. Boa parte dos traumas que Guts passou ao longo de sua vida foram potencializados depois, quando ele já era adulto, depois de entrar para o Bando do Falcão e encontrar mais significado, encontrar uma família. Agora ele podia confiar em alguém, agora ele teria pessoas que o protegiam, agora ele não estava mais sozinho. Porém, no Bando do Falcão, ele começa a olhar mais longe, começa a sentir que poderia mais também. Isso acontece com qualquer pessoa que vai atingindo objetivos ao longo da vida, que vai escalando. O leque começa a abrir, você começa a achar que pode fazer mais, e isso pode ser bom, mas pode ser ruim também. Pode fazer você perder o contato com o presente.
E foi o que aconteceu com Guts no dia em que ele ouve que, para Griffith, um amigo seria alguém no mesmo patamar que ele. Ele se sente para baixo e sente uma necessidade de sair do bando, pois talvez ali, naquela situação, ele jamais seria um igual. Após ouvir essas palavras de Griffith, Guts percebe que jamais lutaria em uma batalha de outra pessoa e que agora suas lutas seriam apenas para ele mesmo. Isso mostra uma grande evolução do personagem, onde ele mostra que tinha chegado a um ponto onde ele sentia que poderia ter mais controle de sua vida, controle do seu próprio destino. Ele poderia ter seus próprios objetivos, apesar de não saber quais eram esses objetivos.
Guts percebe que queria sua própria chama e não queria mais ficar apenas sendo aquecido perto das chamas de outra pessoa. A saída dele do Bando do Falcão é uma cena bem marcante porque, ao mesmo tempo que mostra uma espécie de desnorteamento de Guts, ele meio que não sabia para onde ir, mas também mostra uma espécie de apego seguro que ele tinha tanto com Griffith quanto com Casca. A saída do Bando do Falcão muda completamente sua vida e também a de outras pessoas.
Guts fica então procurando esse propósito até reencontrar novamente o Bando do Falcão. Ao passar muito tempo longe de seus companheiros, ele descobre uma nova realidade: Casca era a nova líder do bando e Griffith havia sido preso há um ano. O reencontro de Guts com Casca é um dos momentos mais marcantes do mangá. Ele consegue se reconectar com ela novamente e acaba impedindo-a de tirar sua própria vida devido à enorme pressão que ela estava sentindo durante todo esse tempo com a ausência dele e de Griffith.
É nesse momento que Guts e Casca têm sua primeira relação íntima, e ele acaba tendo vários flashbacks do abuso que sofreu. É nesse momento também que vemos o tanto que ele se culpa por ter matado Gambino, mesmo sabendo que ele o havia vendido e que estava tentando matá-lo. Uma parte de Guts via Gambino como pai, e essas memórias tinham que viver juntas com memórias assustadoras do abuso que ele sofreu, causado indiretamente pelo próprio pai.
Casca o acolhe e transforma aquele momento em um momento onde ambos conseguem ser vulneráveis um com o outro. É nesse momento que Guts percebe que já tinha tudo que ele queria e que ele só não havia percebido isso antes. O que ele estava procurando talvez era algo que nem existia. O ponto é que, em um momento, ele começou a ter medo de perder o que tinha e foi procurar em outro lugar a resposta, acabando por perceber que a resposta já estava ali o tempo inteiro com ele.
Guts faz o que chamamos de evitação experiencial. Ao invés de enfrentar uma situação, Guts resolveu fugir, fugir do desconforto que estava sentindo. No entanto, o problema não está no desconforto em si, mas em nossas reações a ele. Ao fugir dos desafios, sinalizamos ao nosso cérebro que a única maneira de lidar com situações difíceis é fugir ao invés de enfrentá-las. Isso é um problema porque reforça nossos instintos de evitação. Quanto mais nos esquivamos, mais perpetuamos um ciclo interminável de desconforto que gradualmente se infiltra em todos os aspectos de nossas vidas.
Existe uma forte ligação entre evitação experiencial e solidão. Guts parte com o Bando do Falcão em uma missão para salvar seu amigo, mas essa situação muda sua vida por completo. Guts e Casca encontram Griffith em um estado terrível, onde ele não poderia mais liderar o bando e nem lutar. Ver seu amigo naquele estado vulnerável deixa Guts com vários conflitos e dúvidas. Ele deveria partir? Ele deveria ficar? O que fazer agora?
Quando os outros integrantes do bando pedem a ele para liderá-los, Guts percebe que já tinha tudo em sua vida e que só percebeu isso após ir embora. Ele tinha tudo e agora tinha perdido muita coisa e iria perder mais. E aí entra o grande e famoso evento: o Eclipse. Ver o Eclipse, de alguma forma, destrói a vida de Guts. Era como se todo o pequeno castelo que ele tivesse construído fosse derrubado de maneira brusca e sem o controle dele, como se toda a realidade de antes voltasse para ele com mais força.
Guts perde todo mundo que tinha se tornado importante para ele. Ele vê a pessoa que ele mais amava sofrer e ainda por cima vê seu melhor amigo se tornando um monstro e o maior responsável por tudo lo que estava acontecendo. Ver o abuso de Casca é reviver também aqueles momentos que ele teve na infância. É uma das maiores dores emocionais que o personagem sentiu. A cena em si, como se tem no vídeo do Griffith, é terrível e é gravada mais ainda por todo o contexto dos dois personagens.
O pesquisador Vander Cook fez referência a um estudo fascinante que ele conduziu, no qual ele induziu flashbacks ao fazer com que vítimas de trauma lessem um roteiro sensorial detalhado de sua experiência traumática e, em seguida, escaneou seus cérebros com tomografia por emissão de pósitrons. Ele observou que áreas ativas do cérebro processam glicose mais altas do que as inativas. Conforme os sobreviventes de traumas vivenciavam flashbacks, o lado direito de seus cérebros se tornava altamente ativo e a área de Broca do cérebro se tornava inativa. A área de Broca tem a ver com a linguagem comunicável e, em estados de flashback, isso desligava.
Conforme visto na tomografia por emissão de pósitrons, o córtex visual direito mostrou atividade aumentada. Vander Cook interpretou essas descobertas como consistentes com o terror mudo que os sobreviventes de trauma vivenciam enquanto estão em estado de flashback. E isso foi um terror que Guts presenciou ao longo de sua vida. Quando ele estava em um ambiente no Bando do Falcão e depois em um ambiente onde essas memórias ficavam mais afastadas, tudo isso voltava para ele novamente com o Eclipse.
Toda a sua admiração e afeto que ele sentia por Griffith se transformava em um profundo ódio. E assim começa a era de ódio de Guts. A cena em que ele se mutila praticamente para tentar atingir um golpe em Griffith é uma boa metáfora de como a raiva, de alguma forma, ela acaba também causando uma dor enorme na pessoa que não recebeu o dano. No momento de raiva profunda, a pessoa pode ser entorpecida pela dor e só vê os danos depois. Como é o que acontece com Guts, o Eclipse faz Guts confrontar com o luto de perder as pessoas que estavam ao seu lado, de ver a pessoa que ele mais amou sofrer e entender também que seu melhor amigo não era quem ele imaginava que fosse.
A cena de Guts correndo sem rumo era o exemplo claro de como o personagem se sentia após ter perdido tudo isso. Ele corre enquanto se lembra de cada pessoa que ele compartilhou momentos que jamais voltariam novamente. Naquela hora, mostrava sua enorme vontade de fugir do que estava sentindo. Ele corre e não consegue encontrar um destino. Ele tenta fugir de si mesmo, mas não existe nenhum lugar onde ele poderia fazer isso. Não existia lugar tão longe.
É nesse momento que nasce o Espadachim Negro. Agora, além de confrontar seus demônios internos, Guts tem que confrontar seus demônios externos também. Guts, após o Eclipse, se torna alguém bem mais atormentado, tanto pelo seu passado quanto pelo seu presente. É como se ele tivesse de fato perdido a esperança em tudo. Nesse momento, ele abraça aquela escuridão que sempre teve ao seu redor e passa a ser mais rude e a confiar menos nas pessoas.
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Guts começa a abraçar seu ódio. Como cita o filósofo Friedrich Nietzsche, "o ódio é o lugar que vão aqueles que não conseguem suportar a tristeza". Essa frase não poderia definir melhor o Guts. A diferença entre ódio e raiva é que o ódio envolve todo o indivíduo, enquanto a raiva é direcionada a um aspecto particular. Você odeia alguém pelo que ele é, e você está com raiva de alguém pelo que ele fez. A raiva, portanto, pode ser considerada mais comum em termos de comportamento. Quando as pessoas estão com raiva de alguém, elas frequentemente têm a sensação de que podem controlar a outra pessoa. A raiva essencialmente é tentar remover o obstáculo imposto pela outra pessoa quando você quer atingir um objetivo.
A raiva que Guts sente é justamente pelo que Griffith fez, ao mesmo tempo que também o seu ódio é pelo que Griffith se tornou. Guts passa a não querer ouvir mais ninguém e, à medida que o tempo vai passando, mais ele quer ficar longe de todos, imerso em seu próprio ódio. A raiva e o ódio são sentimentos importantes como qualquer outro; os dois têm uma função. A raiva indica que você precisa mudar algo que não vai aceitar qualquer situação. Isso te motiva a agir e, de fato, em muitas situações, precisamos agir de forma severa, senão o mundo pode te engolir.
Aristóteles escreveu que "o homem raivoso está mirando no que pode atingir, e a crença de que você atingirá seu objetivo é agradável". O psicólogo evolucionista James Gilligan cita que apenas nossos antepassados da Idade da Pedra com a capacidade de invocar a raiva regularmente e serem recompensados por isso sobreviveram para ter descendentes com a mesma constituição. Por isso, não é nenhuma surpresa que os bebês nasçam prontos para expressar raiva, justamente porque é o resultado de um mecanismo cognitivo projetado pela seleção natural.
A natureza favoreceu e preservou a raiva pelas mesmas razões que preservou o amor, o medo, a tristeza, a ansiedade — tudo isso para dar mais vantagem e também ajudar na sobrevivência. Guts precisava manter aquela raiva para jamais esquecer o que seu amigo havia feito. É por isso que Guts não poderia perdoá-lo. Ele percebe que a raiva tem uma função muito importante. Se você não sente raiva ou ressentimento de alguém, você pode deixar aquela pessoa participar da sua vida novamente. Guts, após o Eclipse, se torna mais agressivo, e um ponto interessante é que a agressividade pode diminuir o estresse.
Um estudo liderado pelo pesquisador Henry Laborit mostra como o sistema nervoso é projetado para ação. Se você inibe a ação externa, a fuga ou luta, você se prejudica ou seja, com questões psicossomáticas. Se você inibe um certo sentimento, você pode sentir a ação fisicamente. Quando você inibe a raiva por muito tempo, principalmente como se você estivesse desviando a agressão para si mesmo, a psicologia evolucionista argumentaria que esse comportamento é em parte resultado da evolução das espécies. Na natureza, muito estresse vem da agressão de outro animal, como um predador competindo pelo mesmo recurso. Responder fugindo ou lutando pode ser uma resposta eficiente.
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Os indivíduos que usaram essas estratégias aumentaram suas chances de sobrevivência e reprodução, e é por isso que a raiva se tornou tão importante. Por isso, preservamos ela. Outro ponto curioso da raiva de Guts é o próprio modo Berserk dele, em que ele ganha uma enorme força e resistência, mas que, por outro lado, é extremamente prejudicial ao seu corpo e também faz com que ele não consiga diferenciar amigos de inimigos.
Já comentei no vídeo do Guts, 3 anos atrás, sobre a Síndrome da Fúria Cega, um termo cunhado pelo psicólogo Armand Simon, que caracteriza uma condição onde o indivíduo que possui essa síndrome é marcado por uma extrema reação violenta. Um estado que Guts se encontra quando ele entra no modo Berserk. É interessante porque me parece que Miura quis mostrar muito esse lado negativo da raiva, um modo em que, ao mesmo tempo, te dá energia, mas também que pode te corromper. A raiva tem esse lado negativo; ela faz com que, às vezes, agimos por impulso, mas aí com forte evitação da experiência.
Guts se encontrou na solidão. Percebemos depois Guts bastante reflexivo, pensando, refletindo dentro da própria cabeça. Um estudo do pesquisador Edward Lemay sugere que sentimentos de solidão diminuem a sensação das pessoas de que estão sendo cuidadas e se outras pessoas têm uma boa opinião sobre elas. Esse sentimento de falta de cuidado e consideração pelos outros então amplifica o sentimento de solidão em um ciclo vicioso. E geralmente pessoas mais solitárias têm a tendência maior a se isolarem mais como reflexo do próprio isolamento alto imposto.
Basicamente, a solidão se alimenta de si mesma. Por fora, vemos Guts calmo e pensativo, mas por dentro existe uma enorme turbulência. É só quando ele está em combate que ele consegue canalizar toda essa raiva. É como se fosse nos combates onde ele consegue organizar toda a turbulência que ele tem dentro da cabeça. A pesquisadora Jennifer Lerner cita que, biologicamente, quando as pessoas são despertadas a algum grau de raiva e desabafam, sua frequência cardíaca, pressão arterial e nível de testosterona aumentam. Isso pode sugerir que a raiva nos assusta e nos prejudica, mas na verdade os níveis do hormônio do estresse e cortisol caem, sugerindo que a raiva ajuda as pessoas a se acalmarem e a se prepararem para lidar com o problema, não para fugir dele.
Basicamente, a raiva é recompensadora, e Guts usou ela para se autorregular após o Eclipse. Guts precisa lutar o tempo inteiro para não ceder à sua própria raiva, e a maneira que ele encontra muitas vezes para lidar com tudo isso é se isolando. E Miura, a partir desse momento, passa a expressar as emoções de Guts de uma forma genial, que é através do Puck.
Puck é um elfo que é salvo por Guts e o acompanha após todos os eventos que ocorreram no Eclipse. Ele é o alívio cômico de uma história extremamente trágica, um personagem que tem o poder de curar feridas e, ao mesmo tempo, é capaz de sentir os sentimentos das outras pessoas. É isso que torna interessante a relação entre ele e Guts. Em muitos momentos, é através de Puck que conseguimos saber os sentimentos mais ocultos de Guts, que muitas vezes tenta escondê-los justamente para se proteger, para passar uma imagem de que não se importa com ninguém.
Guts quer ficar sozinho, ele quer ficar envolto dos próprios pensamentos, e Guts não quer que ninguém mais perca a vida por causa dele também. Então, soma tudo isso: a desconfiança das pessoas, as suas dores internas, a culpa que ele quer ter por novas perdas que ele pode causar. Tudo isso é o cenário perfeito para o isolamento.
Mas, aos poucos, ele vai construindo novas conexões, tanto com Puck quanto com Isidro e com novos integrantes. Uma virada de chave acontece quando Farnese pede para segui-lo. Guts aceita que ela o siga, tanto por ela quanto por ele. Existe uma pessoa em fragilidade ao lado dele, e ele precisava aceitar a ajuda de outras pessoas naquele momento. Guts consegue fazer novas conexões, só que novamente ele tem uma dificuldade de apreciar o momento, de apreciar o que está acontecendo com ele. A mente de Guts foca no que é perdido, não no que é ganho.
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Ele rumina muito, e pessoas que ruminam habitualmente são mais pessimistas e menos capazes de se concentrar na resolução de problemas. A ruminação também mantém as pessoas focadas em si mesmas em vez de serem responsivas aos outros, e tudo isso leva a dificuldades interpessoais e também ao isolamento. Como cita o pesquisador Edward Watkins, a inação é uma resposta aprendida a um estímulo. Ela se torna um hábito quando ocorre com frequência, e sem tão pesquisadores teorizam que o estímulo que incita a ruminação é tipicamente um humor baixo associado a uma situação difícil.
Conforme o cérebro continua a responder a humor baixo com ruminação, ele aprende a ligar os dois automaticamente, de modo que a ruminação se torna uma resposta automática à dificuldade. Ou seja, você acaba se habituando aquele comportamento e sempre que sente uma dificuldade, acaba se isolando justamente para ruminar mais. Pra frente, Guts, depois de andar com mais pessoas e sentir responsável por elas, cita que agora se preocupava com sua própria morte, pois agora tinha pessoas para proteger.
Essa cena mostra como ele tinha ressignificado sua nova vida e agora tinha novas perspectivas. Demorou muito tempo, mas ele conseguiu se recuperar do que tinha passado. Guts precisava acolher as emoções. Como cita a psicóloga Bret Fort, a receita para uma mente mais calma é melhorar em acolher as emoções. Mentes quietas aprendem, por meio da prática, que o desconforto de vivenciar nossas emoções com segurança é temporário, enquanto evitar o desconforto emocional pode levar à ansiedade duradoura, ruminação ou outras defesas e sintomas debilitantes, como depressão, automutilação, obsessões, transtornos alimentares e vícios.
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Ou, como ocorre com Guts, uma total falta de foco no que está acontecendo ao redor dele, uma não apreciação do momento presente. Não sabemos como a história de Berserk vai acabar, e está quase acabando. Guts novamente passa por momentos complicados; ele tem que ver de novo Griffith raptando Casca, e vemos novamente ele abatido, sem forças. Mas, mesmo assim, é inegável a resiliência dele. Existem vários personagens resilientes em animes, mas Guts eleva isso a um nível absurdo. Quase sempre, ele consegue se recuperar em situações quase impossíveis de se superar.
Isso foi criando uma espécie de armadura nele, mas, como qualquer dor, tudo tem limite. Tudo isso de alguma forma foi recompensado quando ele finalmente consegue ver Casca recuperando sua sanidade. A lição de Guts e Berserk para mim é que, apesar de toda a crueldade que pode pairar sobre o mundo, existem momentos que, às vezes, compensam toda dor e sofrimento. Guts é o real símbolo da esperança. Ele de fato lutou e foi contra o destino que quiseram colocar nele, mostrando que até mesmo aquele que visitou o inferno pode voltar de lá e não desejar o inferno para o mundo.
Sua maior batalha é justamente pelos seus sentimentos conflitantes de raiva e ódio por Griffith. Parece que, aos poucos, ele foi controlando isso. Ele tinha coisas mais importantes para fazer do que guardar, de certa forma, o ódio por alguém que causou muito mal a ele. Guts, de alguma forma, percebeu que aquele que te causa raiva inevitavelmente te controla.
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Guts, de alguma forma, percebeu que aquele que te causa raiva inevitavelmente te controla. Ao longo de sua jornada, ele aprendeu que a raiva e o ódio, embora sejam sentimentos poderosos e, às vezes, necessários, não podem ser os únicos motores de sua vida. Ao se apegar a esses sentimentos, ele estava permitindo que Griffith continuasse a influenciar sua vida, mesmo depois de todo o mal que havia causado.
Ao perceber isso, Guts começa a se libertar dessa prisão emocional. Ele começa a entender que, para seguir em frente, precisa encontrar um equilíbrio entre sua raiva e sua capacidade de amar e se importar com os outros. Esse equilíbrio é o que lhe permite continuar lutando, não apenas por vingança, mas por algo maior: a proteção das pessoas que ele ama e a busca por um propósito que transcende a simples sobrevivência.
A jornada de Guts é uma lição de resiliência e superação. Ele mostra que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, é possível encontrar forças para continuar. Sua história é um testemunho de que, apesar de toda a dor e sofrimento, ainda é possível encontrar momentos de paz e esperança. Guts é um símbolo de esperança, não apenas para si mesmo, mas para todos aqueles que, como ele, enfrentam desafios aparentemente insuperáveis.
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Ao longo de sua jornada, Guts encontra novos companheiros que, de diferentes maneiras, o ajudam a seguir em frente. Puck, com sua alegria e capacidade de curar feridas, é um lembrete constante de que, mesmo nos momentos mais sombrios, ainda há espaço para a leveza e a alegria. Isidro, com sua juventude e entusiasmo, é um lembrete de que a inocência e a esperança podem sobreviver, mesmo em um mundo tão cruel. Farnese, com sua fragilidade e determinação, é um lembrete de que a força pode vir de dentro, mesmo quando tudo ao redor parece desmoronar.
Esses novos companheiros não apenas ajudam Guts em suas batalhas físicas, mas também em suas batalhas emocionais. Eles o ajudam a ver que, apesar de toda a dor e sofrimento, ainda há beleza e bondade no mundo. Eles o ajudam a entender que, mesmo que ele tenha perdido muito, ainda há muito pelo que lutar.
Ao final, Guts se torna um símbolo de esperança, não apenas para si mesmo, mas para todos aqueles que, como ele, enfrentam desafios aparentemente insuperáveis. Ele mostra que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, é possível encontrar forças para continuar. Sua história é um testemunho de que, apesar de toda a dor e sofrimento, ainda é possível encontrar momentos de paz e esperança.
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Guts é um personagem complexo e profundo, cuja jornada é uma lição de resiliência e superação. Ele mostra que, mesmo nas circunstâncias mais adversas, é possível encontrar forças para continuar. Sua história é um testemunho de que, apesar de toda a dor e sofrimento, ainda é possível encontrar momentos de paz e esperança. Guts é um símbolo de esperança, não apenas para si mesmo, mas para todos aqueles que, como ele, enfrentam desafios aparentemente insuperáveis.