Clóvis de Barros, Inédita Pamonha 242 - Nossas barreiras

Danilo Medeiros



Meus queridos amigos, vamos vivendo e vamos vivendo por intermédio de experiências. Encontros com o mundo que nos afetam, encontros que participamos com o corpo e também com o espírito. Muitas vezes, esses encontros nos trazem fortes emoções e, por isso, muitas alegrias. Mas muitas vezes acontece de ser tristeza, dor, devastação. A experiência é vivida no mundo e muitas vezes estamos no mundo, ali no instante, com a cabeça em outro lugar, antecipando o devir, lembrando do que aconteceu. Mas também acontece de estarmos no mundo com a cabeça no mundo, com a cabeça 100% focada na imediatidade do presente, na ocorrência, na situação vivida.


Ora, em situação de muita tristeza, a psicanálise nos garante que tendemos a tirar da consciência aquele conteúdo entristecedor, e vai chamar isso de recalque. A experiência fica na alma, mas fica fora do âmbito da consciência. Isso nos permite deduzir que, para a psicanálise, a alma é dividida em duas partes: aquela parte da alma de que temos consciência, poderíamos dizer iluminada pela consciência, e a outra parte que fica escura, é uma parte sobre a qual não pensamos, da qual não lembramos, mas que continua ali.


Ora, essa parte que continua ali, ela não fica no escuro de boa. Ela quer participar, quer fazer parte do mundo consciente, quer voltar a ser pensada, voltar a ser problematizada, elaborada, discutida, e ela vai fazer de tudo para isso. O problema é que, como ela nos aborrece, montamos uma barreira para que ela não possa entrar no orbital da luz da consciência. É como se tivesse uma lanterna no teto que ilumina o chão, como no teatro, um spot que ilumina o chão numa bola, é a parte do palco da consciência. A lanterna até se desloca, ilumina outros pedaços do centro do palco, mas a lanterna não vai até os cantos do palco. E esses cantos do palco acabam abrigando aquilo que nos aborrece.


Mais para que isso não venha a ocupar regiões mais centrais do palco, montamos uma barreira, uma censura, impedindo assim que esse conteúdo entre na consciência, dentro, venha a nos despotencializar, nos realizar, porque somos uma luta pela potência e sabemos que aquilo vai nos fazer mal, vai nos entristecer, vai nos brochar. Só que aquilo fica lá, cutucando, acaba aparecendo nas brechas da barreira, nas fissuras da barreira, nos sonhos, nos atos falhos, naquilo que a gente não quer dizer e acaba dizendo, no que está subjacente aos discursos. A barreira é boa, mas não é 100% eficaz.


Então, desde Demócrito até hoje, sustenta-se que é preciso cuidar disso aí que foi recalcado. Deixá-lo onde ele está não é a melhor ideia, tá nos prejudicando mais do que a gente consegue perceber, porque, claro, tá fora da nossa consciência, tá nos fazendo mal sem que a gente se dê conta da causa. Então, o convite é elaborar, é falar, é falar de si, é baixar a guarda, é permitir que, no meio dos discursos, venha à tona, é deixar com a guarda baixa as ideias se encadear livremente e perceber que essas zonas obscuras acabam participando de maneira cifrada, codificada, da elaboração do nosso discurso. E aí, vamos aos poucos dissolvendo isso, diluindo isso.


E a maneira de tirar da alma essa espécie de cancro nefasto é pelo discurso, que é terapêutico. O discurso é como quando você exprime uma espinha e aquela parte de pus da espinha é ejetada. O discurso é um modo de você se livrar de alguma coisa que te atrapalha, que te faz mal, sem que você se dê muito conta disso.


A elaboração do discurso, ela não é um dado óbvio da realidade. Não nascemos sabendo falar, falar, elaborar discurso, produzir ideia, é algo que se aprende. O discurso tem uma matéria-prima que são as palavras, e as palavras, quando mobilizadas, elas tentam dar conta da realidade sobre a qual elas querem falar. Quanto mais recurso você tiver, quanto mais domínio você tiver das palavras, você conseguirá elaborar de maneira mais precisa aquilo que você quer dizer. Se você só trabalha com 30, 40 palavras, você não consegue elaborar, não conseguindo elaborar, você não consegue ir no cerne do problema, não consegue comunicar aquilo que te angustia, que te devasta. E essa dificuldade, aparentemente técnica, é impeditiva de uma cura eficaz.


Veja que interessante: talvez as palavras de que dispomos para dar conta da nossa vida cotidiana, elas sejam suficientes, e a gente não percebe, mas a gente acaba usando aquilo que a gente acha que o outro vai entender, e acaba se servindo de uma pequena porção de recursos compartilhados pela maioria. E vai assim, empobrecendo o nosso modo de ser. O problema é que, às vezes, a realidade da qual estamos falando, ela solicita de nós mais palavras, mais recurso semiótico, mais matéria-prima. E aí, estamos pouco habituados a alargar esse repertório. E acabamos por elaborar de maneira imprecisa aquilo sobre o que estamos falando.


Por essas outras, até mesmo para falar de si, é preciso de recurso. Você pode não perceber, mas quando você alarga o vernáculo e se serve de palavras mais rigorosas, mais específicas, mais adequadas à realidade da qual está falando, você enriquece seu discurso e aproxima essa elaboração do mundo que você pretende descrever. Na hora que você fala de si, uma realidade altamente complexa, você pode dar de si um tratamento narrativo à altura da tua complexidade, ou pode falar de si com os recursos que todo mundo entende. Só que aí você acaba perdendo a oportunidade de destacar nuances. Usando as palavras que todo mundo usa, você pode não perceber, mas você acaba empobrecendo a realidade de que fala. Portanto, você mesmo, você acaba parecendo demais com todo mundo.


Porque quando todo mundo fala de si com aquelas mesmas palavras, tudo aquilo que exige mais sofisticação fica de fora. Desse modo, passamos de nós uma narrativa empobrecida, fraca, meio pastel, teorizada, parecida com a de qualquer um. E não é porque o qualquer um seja ruim, é porque ninguém é qualquer um. Todos temos especificidades maravilhosas, todos temos detalhes de existência iluminados, todos temos brilho. Mas muitas vezes, por ignorância, por despreparo, por acanhamento de repertório, não conseguimos dar a esses detalhes da nossa existência o destaque que poderia merecer, não conseguimos dar esses detalhes da nossa vida essa sutileza, o brilho que deveriam estar na descrição que fazemos de nós mesmos.


E aí, você encontra com alguém no bar e quer saber quem você é, e você é um verdadeiro tesouro de experiências e sensações. Você, por falta de palavras, acaba construindo discursos sobre si que são opacos, sem graça, sem viço e sem vigor. Portanto, a graça está em ter recursos e usá-los, seja para falar de si e cuidar do que acontece na alma e nos perturba, seja para falar de si e comunicar ao mundo quem efetivamente somos, experiências temos, o que sentimos e o que estamos pensando naquele momento.



Danilo Medeiros
Recém formado em R.H e Administrador da Overcentral Instagram: @danilopablolima
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