Clóvis de Barros, Inédita Pamonha 245 - Arenas de luta
Existe um cenário possível da nossa convivência que é um cenário de conflito. Afinal de contas, você sabe, todo mundo deseja o tempo inteiro, mas não
Publicado por
Danilo Medeiros
Inédita Pamonha 245 - Arenas de luta |
Todos nós sabemos que a moral é fundada num conjunto de proibições e, quem sabe, também de autorizações. Aquilo que ela não proíbe, ela autoriza. A moral nos diz o que podemos fazer e o que não podemos fazer, definindo limites ao nosso comportamento. E faz isso porque o outro existe e é preciso considerá-lo. A existência do outro, a presença do outro, exige sua consideração e limita o próprio comportamento. Se vivêssemos sós, de fato, a moral não serviria para nada. O certo é que a presença do outro sempre exigiu de nós essa conjectura a respeito dos limites da nossa ação.
Normalmente, a moral acaba se tornando palpável num Código de Conduta, e esse código de conduta justamente definirá o que não está autorizado fazer, visando assim a proteção do outro, impedindo-nos de lhe causar algum dano. Trata-se, portanto, mais do que simplesmente considerá-lo na equação deliberativa da nossa ação, mas respeitá-lo, respeitar a sua dignidade, respeitar a sua existência como equivalente à nossa. De tal maneira que costumamos dizer: o respeito a essa dignidade implica não tomar jamais o outro como mero instrumento de alguma pretensão própria. De modo a que os limites permitirão que o outro tenha vida digna e que possa existir ao lado e não a serviço.
É exatamente porque é preciso limitar a conduta que surgirão as noções de bem e de mal, para que fique mais claro e possamos entrar num acordo a respeito do que se pode e do que não se pode fazer. A moral acaba se convertendo numa espécie de condenação do mal.
Aqui, haverá quem comece sua crítica. Até aqui tá tudo muito bem, mas haverá quem diga que a moral trabalha para além da proteção do outro. A moral implica em fazer sentir culpado, o que nós poderíamos chamar entre nós aqui de culpabilização. O problema não é tanto a regra de conduta, porque sem ela não tem como conviver mesmo, mas a moral acaba se tornando uma espécie de empresa de culpabilização. A título de exemplo, na moral cristã encontramos a noção de pecado, e pecado é aquilo que nos conduz ao inferno. Ora, haverá quem diga então que o centro, o eixo de gravidade da moral, é a culpa, que a moral infringe.
É exatamente nesse momento que alguém sugerirá que a culpa não passa de um meio eficaz de impedir o forte de manifestar a sua força. Ou seja, a culpa impede o forte de viver fortemente, a culpa impede o forte de viver a sua força, a culpa impede o forte de expressar a sua natureza de forte. E é claro, deve ser um pouco frustrante: você tem uma potência imensa, mas por alguma razão articula-se uma complexa teia de impeditivos e obstáculos e você acaba impedido de manifestar a sua força. É como se você pudesse nadar muito rápido, mas tem que nadar só com 50% de velocidade por alguma regra qualquer. É como se você tivesse um carro que te permitia não sei quantos quilômetros por hora, só que não vai ter que andar a 90 ou a 120.
Então, você tem aí uma situação curiosa, porque se no final das contas você impõe limites de conduta, naturalmente esse limite é muito pertinente para quem tem a potência de fazer o que está sendo proibido. Assim, é completamente inócuo você impor um limite de 120 km/h para alguém cujo veículo só vai a 90. Então, essa regra não alcança. A regra é útil para quem tem veículo que vai a 240. Então, fica evidente que os limites à ação só servem para quem pode, tem condições de fazer acontecer aquilo.
Existe um cenário possível da nossa convivência que é um cenário de conflito. Afinal de contas, você sabe, todo mundo deseja o tempo inteiro, mas não tem mundo para todo mundo, não tem troféu para todo mundo, não tem gente apetecível para todo babão. Não tem. O número de desejantes é maior do que o número de troféus desejados, e isso faz com que a ação da pretensão de um implique a frustração do outro. E aí, como queremos a satisfação e não queremos a frustração, vamos lutar para que seja a nossa pretensão a ser satisfeita e a do outro a ser frustrada. Então, nessa situação de conflito, nessa arena de luta, cedo ou tarde o fraco vai pagar a conta, cedo ou tarde o fraco vai dançar. Se os recursos são escassos e há disputa, o fraco estará em desvantagem e a força será sempre vantajosa. Poderíamos dizer uma vantagem evolutiva.
Então, a gente acaba tendo que aceitar que a ideia de culpa não poderia ter nascido na cabeça de um forte, porque o forte tem os meios, tem nas mãos os meios para satisfazer sua pretensão, e a única coisa que ele quer é satisfazer a sua pretensão. Então, a troco do que ele ia inventar um esquema para se sentir culpado de algo que ele tem condições de fazer? Sabe aquela coisa do inglês que tem o verbo, aquele negócio do "can", né? Physical ability e do de estar autorizado: você até pode, no sentido do verbo, "I can, you can", mas você "you may not", né? "You can but you may not". Então, claro, no final das contas, o forte ele pode, então não seria ele a inventar um impeditivo para ele próprio que o impedisse de manifestar a sua força.
Então, é claro que a ideia de culpa só pode ter nascido na cabeça de um fraco. O forte não dá bola para culpa, não se importa. O forte não se importa que o seu adversário não sinta culpa. A culpa do adversário não é um problema pro forte. O forte não precisa que seu adversário sinta culpa para se sentir protegido. O forte se garante. Quando dois fortes se enfrentam, não hesitam em usar sua força um contra o outro. O mais forte triunfa e o vencido aceita sua derrota porque aceitou as regras do jogo. Leônidas, por exemplo, atravessou o desfiladeiro das Termópilas com valentia. Ele jamais teria desafiado os persas estando em clara desvantagem para depois se queixar da atrocidade dos inimigos. O forte aceita muito bem o fato de que na vida é preciso aceitar a oportunidade ou a ocasião de se confrontar com a força do outro.
Não há para o forte nenhuma razão para culpar algum outro forte de expressar a sua natureza. Ora, perceba que nesse sentido estamos diante de uma concepção tão naturalista da vida humana que pouco difere da de um animal, um animal quem sabe animado, dotado de alma, animal de ânima mesmo. No fundo, o que define um humano como qualquer outro animal é a sua força vital, e a vida é um enfrentamento de forças. Ora, se é superior, ora se é inferior. Não há nenhuma razão para se opor a esse princípio. E é nessa relação de forças que o fraco tem interesse em se proteger. Para se proteger, ele tem interesse em privar o forte do uso dos seus atributos, ele tem interesse que o forte não possa exercer a sua força contra ele próprio. E é exatamente por isso que o fraco vai inventar a moral: regras, princípios, valores, proibições que com certeza farão o forte hesitar em empregar a sua força.
Ora, a moral portanto acaba surgindo como uma iniciativa de culpabilização do forte, inventada pelo fraco, para retomar-lhe o poder. Como o fraco sabe que não pode medir forças com o forte, que se ele o fizer ele não tem nenhuma chance, ele se vê obrigado a recorrer à astúcia, e a moral é uma estratégia eficaz para reverter a sua desvantagem. O fraco na verdade sabe que se ele se encontrar com o forte numa sala vazia em situação de conflito, ele vai se dar mal rapidinho. Mas se esse mesmo encontro se der na sala de um tribunal, diante de um juiz, em audiência, o desfecho daquela relação de forças poderá ser bem diferente. Ali no tribunal, o juiz aplicará a lei, e a lei determina a proibição de agredir, a lei proíbe o forte de usar a sua força. É por conta da lei que o forte se torna culpado pelo que viera a fazer, culpado não em frente aos olhos da natureza ou aos olhos da energia vital, mas sim aos olhos da sociedade, das regras de convivência harmoniosa, das regras morais.
E é por isso que a moral seria uma espécie de consagração da bondade dos bons, e os bons são os fracos. São bons aqueles que não podem se permitir ser outra coisa senão bons. Se alguém é bom, é porque não tem condição para outra coisa. Se tivesse condição, deixaria de ser bom e passaria a ser um forte.
em
Danilo Medeiros
Recém formado em R.H e Administrador da Overcentral
Instagram: @danilopablolima