Clóvis de Barros, PartiuPensar 146 - O que é liberdade?
É muito tentador para aqueles que gostam de Filosofia sugerir que o livre arbítrio não existe, que a liberdade não existe, que tudo é determinado, como quer Schopenhauer. É possível fazer o que se quer, é possível ser livre para fazer o que se quer, mas não é possível ser livre para querer fazer o que se quer. A liberdade é uma liberdade de execução, mas o apetite, o desejo que vem antes, aí esse se impõe. Liberdade, portanto, é uma falácia. Você pode até fazer ou não, mas não tem liberdade para querer ou não. Haverá quem diga que todo livre arbítrio resulta da ignorância, como Espinosa, a ignorância das causas que determinam tudo inapelavelmente. Como você não conhece as causas, você chama de liberdade e acredita escolher o que já está traçado pelos nexos de causalidade material. Como você não sabe a razão, você supõe estar na origem da escolha. É um ignorante, portanto.
Tudo isso é muito legal, tudo isso pega bem, tudo isso faz pensar que você é uma pessoa incrível e que você não aceita o senso comum, o senso comum que acredita numa vida escolhida, numa certa liberdade. Isso te destaca, isso te permite sugerir que o resto do mundo é imbecil e que você é especial. O problema é que, se você tiver razão, algumas coisas ficam complicadas na hora de viver.
Imagina, por exemplo, num tribunal, um indivíduo está sendo acusado, ele está sendo acusado, por exemplo, de ter roubado alguém, subtração de coisa alheia móvel com violência. E aí, então, ele, orientado por você, dirá que ele nasceu com disposições tais que o levaram a roubar, que ele não poderia agir diferentemente. Ou ele pode alegar que, dadas as condições materiais de vida, as relações mantidas com o meio social, ele não poderia ter agido diferentemente. Ele poderia alegar também que, dadas as condições econômicas, ele não poderia ter agido diferentemente. Ele poderia alegar também que, no fundo, a ideia de roubar lhe brotou do inconsciente por conta de muitos traumas, recalques que ele acabou experimentando ao longo da vida. Ou ele poderia dizer tudo isso junto, que ele não passa de um subproduto de forças que ele não controla e que, portanto, na hora de roubar, aquele roubar foi uma soma de vetores que têm a ver com a história, com a sociedade, com a economia, com a geografia, com a psiquê, com o inconsciente. Em outras palavras, eu fiz o que eu só poderia ter feito. Quando roubei, eu não poderia não ter roubado. Portanto, se a minha condenação depende da crença de que eu poderia não ter feito o que eu fiz, a minha condenação é absurda, porque eu só poderia ter feito o que eu fiz.
Mesmo alguém como Espinosa, que considera o livre arbítrio uma ignorância das causas, dirá o seguinte: você de fato poderia não poderia ter feito diferentemente, mas ainda assim precisa ser enquadrado do ponto de vista social. Mesmo roubando necessariamente, você tem que ser retirado do convívio porque a sociedade também necessariamente não pode suportar você. Portanto, vamos condenar você mesmo sabendo que você não poderia fazer de outra forma, o que é no mínimo intrigante, porque a gente sempre acredita que uma pessoa é condenada justamente porque ela fez de um jeito, mas poderia ter feito de outro jeito, e que, portanto, ela tinha uma certa autonomia deliberativa e de execução do seu ato.
Mas o juiz, seguindo a mesma linha de raciocínio que você propôs, respondeu o seguinte: ele nasceu com disposições tais que, diante de um roubo, subtração de coisa alheia móvel com violência, ele tende a condenar. E depois ele também viveu num lugar onde o roubo era inaceitável, porque ele viveu num espaço ideológico de profundo respeito à propriedade privada. E depois, dado os traumas que ele sofreu, sobretudo um quando furtaram o lápis com borracha predileto dele e que ele teve que recalcar a experiência para poder suportar a vida, ele é particularmente sensível a tudo do que é privação de patrimônio móvel. Enfim, ele encarar os mesmos argumentos que você e terminará concluindo que ele também não pode agir diferentemente e, portanto, ele também não pode não condenar. Pede desculpa, mas a condenação é tão necessária para ele quanto foi o roubo para o réu. Ele, que se vê então por conta da vida que teve, da história que teve e do seu inconsciente, ele se vê forçado a aplicar as leis daquele lugar.
Nós poderíamos imaginar uma segunda situação: você, que tem certeza que o livre arbítrio é uma ignorância, se depara com um quadro de violência física e sexual contra criança. E aí você é tomado de horror, mas alguém vira para você e diz: "Sabe o que que é? Lembra do livre arbítrio." Então o violador é o que só poderia ser, dada toda a argumentação que você mesmo ofereceu. Isso fica ainda mais desesperador quando a vítima te é próxima, quando a vítima te é vinculada por afetos de amor. E é claro que a vítima pode ser você, que, agredido fisicamente na rua, suplica por clemência e ouvirá do seu agressor a seguinte argumentação: "Dado o meu mapa genético, as condições de vida em que vivi, os traumas que são os meus, a minha história e a minha geografia, a classe social onde fui criado, eu não tenho compaixão. Pelo contrário, eu exulto ante o sofrimento humano que dou causa." E aí, talvez nesses casos, você torça pela ignorância, torça pela autonomia, torça pela liberdade, torça pela consciência, torça pela possibilidade de ser diferente. Porque, se não for esse o caso e você tiver sempre razão, aí é claro, você e seus entes queridos estarão em maus lençóis.
Nessa linha de raciocínio, a questão da liberdade e do livre arbítrio se torna ainda mais complexa quando aplicada a situações cotidianas e às relações interpessoais. Se aceitarmos que todas as nossas ações são determinadas por fatores externos e internos sobre os quais não temos controle, como podemos responsabilizar alguém por suas ações? E, mais importante, como podemos esperar que as pessoas mudem ou melhorem se acreditamos que elas estão presas a um destino inexorável?
Para ilustrar essa complexidade, imagine uma situação em que um amigo próximo comete um erro grave, como trair a confiança de alguém ou causar um dano significativo. Se você acredita que ele não poderia ter agido de outra forma devido às suas disposições genéticas, história pessoal e influências sociais, como você deve reagir? Deve perdoar imediatamente, entendendo que ele não tinha escolha? Ou deve responsabilizá-lo, esperando que ele aprenda com o erro e mude seu comportamento no futuro?
Essa dualidade entre determinação e liberdade permeia muitas áreas da vida, desde a justiça criminal até a educação e a saúde mental. No campo da justiça, a questão do livre arbítrio é crucial para determinar a culpabilidade e a punição. Se um criminoso não poderia ter agido de outra forma, como justificar a punição? Por outro lado, se não houver consequências para as ações, como garantir a segurança e a ordem social?
Na educação, a crença no livre arbítrio é fundamental para o processo de aprendizado e desenvolvimento pessoal. Se os alunos acreditam que podem escolher seus caminhos e mudar suas atitudes, eles são mais propensos a se esforçar e a buscar melhorias. No entanto, se acreditarem que suas ações são predeterminadas, podem se sentir desmotivados e resignados.
Na saúde mental, a questão da liberdade é igualmente relevante. Muitas terapias psicológicas se baseiam na premissa de que os indivíduos têm a capacidade de mudar seus pensamentos e comportamentos. Se uma pessoa acredita que suas ações são determinadas por fatores externos, pode se sentir impotente para fazer mudanças positivas em sua vida. Por outro lado, a aceitação de que certos comportamentos são resultado de traumas passados ou condições genéticas pode ajudar na compreensão e no tratamento de problemas mentais.
Em última análise, a questão da liberdade e do livre arbítrio não tem uma resposta simples. É um debate que envolve filosofia, psicologia, sociologia e até mesmo neurociência. Cada perspectiva oferece insights valiosos, mas também levanta novas questões. O que é claro é que, independentemente de nossas crenças sobre a liberdade, as nossas ações e decisões têm consequências reais e tangíveis, tanto para nós mesmos quanto para aqueles ao nosso redor.
Portanto, enquanto continuamos a explorar e debater essas questões complexas, é importante lembrar que, independentemente de nossas crenças filosóficas, temos a responsabilidade de agir com empatia, compreensão e justiça. Afinal, a verdadeira liberdade pode residir não apenas na capacidade de escolher, mas também na maneira como tratamos uns aos outros e como construímos uma sociedade mais justa e compassiva.