Se você acompanha a cena de animes e mangás nos últimos anos, já deve ter percebido: Berserk está em todo lugar. Não só nas prateleiras dos fãs mais antigos, mas também na pele — literalmente — de uma galera que decidiu tatuar a marca do sacrifício sem nem mesmo ter lido os capítulos da obra clássica de Kentaro Miura. Confesso: isso me intriga e, ao mesmo tempo, me faz refletir sobre como uma história tão densa e visceral como Berserk virou, em partes, um símbolo de resistência… ou será apenas moda? A verdade é que a popularidade do Guts e sua espada Dragon Slayer explodiu de um jeito que nem mesmo o falecido autor poderia imaginar. E olha, eu acho fascinante — e um pouco preocupante — como certos símbolos podem ser esvaziados de significado quando viram trend. Mas calma, não é só crítica. Vamos entender juntos como isso aconteceu e o que diz sobre a cultura fã atual.
A Influência dos Games Souls e a Popularização de Berserk
Olha, se a gente for botar a mão no fogo pra descobrir um dos grandes responsáveis por essa popularidade toda, eu aposto sem medo: a série Souls, da FromSoftware. Quem é mais velho (ou pelo menos quem já era fã de mangá nos anos 2000) lembra que Berserk era praticamente um tesouro escondido. Você só encontrava quem realmente fuçava fóruns obscuros ou fazia parte daqueles grupos de WhatsApp cheios de links duvidosos. Mas aí veio Dark Souls — e, com ele, aquele papo que todo youtuber de games adorava repetir: “galera, vocês sabiam que Dark Souls bebeu direto da fonte de Berserk?”.
E não é meme não. A estética medieval sombria, a sensação de desespero, inimigos colossais, até a famosa Greatsword do Guts virou praticamente um padrão nos games. Essa conexão fez com que fãs de games — que talvez nunca tivessem pegado um mangá na vida — ficassem curiosos para conhecer a obra original. Foi uma porta de entrada massa, eu até acho positivo! O problema é que muita gente parou na porta. Conheceu o Guts pela luta, pela espadona, pelo “homem mais foda do mundo”, mas não necessariamente pela jornada de superação, trauma e humanidade que o Miura construiu com tanto cuidado. E aí a obra, que é profunda pra caramba, acaba sendo reduzida a “aquele mangá violento que inspirou Dark Souls“. Tenso, né?
A relação entre Berserk e a série Souls da FromSoftware é um daqueles raros casos em que a inspiração é tão evidente e tão bem executada que acabou criando uma ponte permanente entre duas formas de mídia. Hidetaka Miyazaki, o criador de Dark Souls, nunca escondeu sua profunda admiração pela obra de Kentaro Miura. Essa influência transcende meras referências estéticas; está impregnada no DNA mesmo dos games. A atmosfera opressiva e decadente de Lordran, por exemplo, ecoa diretamente o mundo sombrio e sem esperança do universo de Berserk após a Era de Ouro. Ambos os mundos são lugares onde a humanidade luta para sobrevir não contra um mal claramente definido, mas contra uma força inexorável e corrosiva, seja a Chama Fenecente ou a influência da Ideia do Mal.
Os protagonistas desses jogos, assim como Guts, são frequentemente figuras solitárias e amaldiçoadas, empurradas para conflitos de escala cósmica. A jornada do Cavaleiro Encabulado em Dark Souls, um não-morto em um mundo em ruínas, reflete a luta eterna e aparentemente sem sentido de Guts contra seu destino. A espada Greatsword, uma arma colossal e desajeitada presente em praticamente todos os títulos Souls, é uma homenagem direta e incontestável à Dragon Slayer. A presença de inimigos colossais e de arquiteturas ciclópicas que inspiram tanto temor quanto admiração também é uma marca registrada que Berserk e os games Souls compartilham, criando uma sensação de pequenez e insignificância no jogador e no leitor.
Essa simbiose criativa funcionou como um poderoso vetor de popularização para Berserk. Muitos jogadores, ao se depararem com essas referências, foram impelidos a buscar a fonte original. A pergunta “qual a origem dessa espada gigante?” ou “de onde veio a ideia desse cavaleiro de armadura canina?” levou milhares de fãs de videogame a descobrirem o mangá. Foi uma das mais eficientes e orgânicas campanhas de marketing que uma obra de nicho poderia ter, catapultando Berserk para um novo patamar de visibilidade global. A série Souls, por sua vez, ganhou uma camada adicional de profundidade para seus fãs mais dedicados, que passaram a enxergar suas mecânicas e narrativa sob a luz da obra que a inspirou.
No entanto, essa via de mão dupla também trouxe consigo um efeito colateral significativo: a simplificação da narrativa de Berserk. Para uma parcela desse novo público, a obra do Miura começou a ser compreendida principalmente através da lente da violência gráfica, da luta épica e da estética dark fantasy que os games Souls popularizaram. A complexidade psicológica dos personagens, os temas filosóficos sobre livre-arbítrio, destino e trauma, e a delicada construção de relacionamentos como o de Guts e Casca foram, por vezes, ofuscadas pela imagem do “cara bravo com uma espada grande”. Berserk corria o risco de ser reduzido a um catálogo de ideias legais para games, perdendo a essência narrativa que o torna uma obra-prima.
Essa percepção superficial foi amplificada pelo consumo digital acelerado. Muitos dos novos “fãs” chegavam ao mangá não pela leitura paciente dos volumes, mas através de compilações de cenas de ação no YouTube ou de edits no TikTok que destacavam justamente os momentos mais impactantes visualmente, em detrimento da trama slow-burn. Dessa forma, a mesma ponte que levou tantos ao mundo de Berserk também permitiu que muitos o atravessassem sem realmente se aprofundarem nele, contentando-se com uma visão turva e incompleta da paisagem. A influência dos games Souls foi, portanto, uma faca de dois gumes: vital para a popularização, mas potencialmente redutora para a compreensão da profundidade da obra de Miura.
A ironia final reside no fato de que, enquanto Berserk era descoberto por uma nova geração através de Dark Souls, a própria série Souls evoluía e incorporava temas cada vez mais complexos, aproximando-se, em certa medida, da maturidade narrativa que sempre caracterizou o mangá. Esse ciclo de influência e redescoberta é um testemunho do poder duradouro da visão de Miura. Ele não apenas criou uma história seminal, mas também plantou sementes que floresceriam em outras mídias, que, por sua vez, trariam novos olhares para a sua criação, num diálogo contínuo entre o cânone e aqueles que por ele são inspirados.
O Boom da Pandemia e o Impacto da Morte do Mestre Miura
Se os games foram a porta de entrada, a pandemia foi o empurrão que jogou geral pra dentro do universo de Berserk. Não dá pra negar: aqueles meses de quarentena fizeram a galera devorar conteúdo como nunca. E Berserk, com sua fama de obra densa e “para quem tem estômago”, virou um daqueles desafios — tipo “maratonei Berserk durante a quarentena e minha vida mudou”. Só que, de novo, nem todo mundo foi até o fim. Muita gente consumiu a obra pela metade, através de vídeos de resumo no YouTube ou edits dramáticos no TikTok. E aí a coisa ficou ainda mais superficial.
E então, veio o baque: a notícia da morte do Kentaro Miura. Foi um daqueles momentos em que até quem não lia Berserk parou para prestar homenagem. A comoção foi gigante — e justa, afinal, estamos falando de um dos maiores artistas da história dos quadrinhos. Só que, junto com a comoção, veio um boom de curiosidade. A obra virou tema de vídeos, especulações e matérias jornalísticas. Berserk ganhou um holofote mundial, mas um holofote que, muitas vezes, iluminou mais a tragédia da obra inacabada do que a profundidade da narrativa.
Confesso: fico dividido. Por um lado, é incrível ver a obra ganhar o reconhecimento que merece. Por outro, me preocupa como ela é às vezes “consumida” de forma rápida e desconexa, virando apenas um símbolo de “maturidade” ou “cultura nerd” — quando, na verdade, é uma história que exige tempo e reflexão. E é aí que entram os “fãs do estudo”, mas isso é papo para o próximo parágrafo…
A Redução a “Cenas de Estudo” e a Falta de Profundidade nas Discussões
Agora a gente chega num ponto que, pra mim, é o mais delicado de todos: a galera que reduz Berserk a um catálogo de “cenas de estudo”. Se você é fã de verdade, sabe do que eu tô falando — aqueles comentários repetitivos em qualquer menção à obra, sempre com piadinhas de mau gosto ou referências a momentos traumáticos do mangá, como se isso fosse a essência de Berserk. E olha, eu não sou purista nem nada, até entendo que a obra tem momentos pesados que impactam a gente, mas reduzir tudo a isso é como assistir O Poderoso Chefão e só comentar dos tiros.
O que mais me preocupa nesse comportamento é que ele geralmente vem de um público mais jovem — muitas vezes adolescentes que, na ânsia de parecerem “maduros” ou “diferenciados”, acabam fixando apenas no aspecto mais chocante da história. E pior: muitos nem leram o mangá! Conhecem a obra através de vídeos de 10 minutos no YouTube ou de memes no Twitter. Daí, quando vão discutir Berserk, não falam sobre o desenvolvimento do Guts, a complexidade do Griffith, a simbologia da marca do sacrifício ou os temas de amizade, trauma e superação… Não! Só sabem falar do tal do “estudo”. É sintomático de uma era em que o conteúdo é consumido de forma rápida e superficial, e onde o símbolo vale mais que a substância.
E aí, quando você tenta puxar uma conversa mais profunda, leva um “ah, mas você é chato, é só uma piada”. Cara, não é sobre ser chato — é sobre respeitar uma obra que, pra muitos de nós, é mais do que entretenimento: é arte. É sobre entender que Berserk não é só violência; é sobre humanidade.
Equilibrando Popularidade e Profundidade – O Legado que Fica
E agora, como a gente lida com isso? Como equilibrar a popularidade massiva de Berserk com a necessidade de manter viva a essência da obra? Pra mim, a resposta não tá em criar um “clube dos fãs verdadeiros” e sair caçando quem não leu o mangá inteiro três vezes. Acesso não é inimigo do apreço. O que a gente pode fazer — e aqui eu falo especialmente pra quem já é fã há mais tempo — é guiar a curiosidade dessa galera nova. Em vez de criticar, que tal recomendar os capítulos mais emocionantes, explicar o contexto por trás da marca do sacrifício, ou destacar como o Miura trabalhava os sentimentos dos personagens?
A popularidade, no fim das contas, é uma chance de ouro para manter o legado do Miura vivo. E que legado, hein? O homem não só desenhou lutas épicas e monstros aterrorizantes; ele criou uma história sobre resiliência, sobre encontrar luz mesmo na escuridão absoluta. E isso, talvez, seja a mensagem mais importante que a gente pode carregar — seja tatuado no braço ou no coração.
Agora, com a continuação do mangá pelos colegas do estúdio do mestre, temos a oportunidade rara de ver essa história seguir adiante. E talvez seja isso o que mais importa: não como você chegou em Berserk, mas o que você tira dela. Pra alguns, vai ser sempre o “mangá do cara da espada grande”. Tudo bem. Mas pra quem quiser ir mais fundo, a jornada do Guts sempre estará lá, esperando. E cá entre nós: ela vale cada página.