O lançamento de um videogame é, frequentemente, o culminar de anos de trabalho intenso, mas para a MercurySteam, o estúdio espanhol por trás do aclamado Metroid Dread e do recente Blades of Fire, o período pós-lançamento tem sido marcado por uma tempestade de controvérsias que vão muito além da recepção crítica do jogo. Em 2025, o estúdio implementou uma série de mudanças internas drásticas, incluindo a normalização de horas extras diárias e uma redistribuição irregular da jornada de trabalho, que desencadearam um profundo mal-estar entre os colaboradores. Através de testemunhos anónimos colhidos pelo sindicato CSVI e pelo meio 3DJuegos, emerge um quadro preocupante de condições de trabalho em deterioração, falta de transparência da direção e uma cultura corporativa que, segundo os relatos, penaliza quem ousa questionar. Este artigo mergulha nos detalhes desta crise, explorando as acusações de práticas laborais abusivas, os supostos licenciamentos retaliatórios e o impacto humano por trás do desenvolvimento de um dos jogos mais comentados do ano, nem sempre pelas melhores razões.
A Normalização das Horas Extras: A Caixa de Pandora Aberta pela Direção
A decisão da administração da MercurySteam de institucionalizar uma hora extra diária no início de 2025 não foi um mero ajuste operacional, mas sim o abrir de uma Caixa de Pandora de problemas laborais. Apresentada sob o véu de uma necessidade premente para a sustentabilidade do estúdio, a medida foi, na prática, a catalisadora de um ambiente de trabalho desgastante e explorador. O que começou como uma diretiva aparentemente pontual rapidamente se normalizou, transformando-se numa expectativa não escrita – mas profundamente sentida – de que a jornada padrão de oito horas já não era suficiente para demonstrar dedicação ou garantir a segurança no emprego. Esta mudança sutil, porém significativa, redefiniu por completo a cultura interna do estúdio.
A implementação desta política foi marcada por uma comunicação deliberadamente ambígua e confusa, que serviu para desarmar a resistência inicial dos funcionários. Num encontro crucial, a direção descreveu a medida como obrigatória, sem no entanto fornecer um enquadramento legal claro ou distinguir entre as horas extraordinárias previstas no contrato individual de trabalho (DIJ) e esta nova imposição. Para justificar a drástica mudança, a administração recorreu a um discurso alarmista, pintando um quadro de “situação catastrófica” na empresa. Esta retórica de crise, carregada de termos hiperbólicos, foi strategicamente utilizada para criar um estado de exceção onde medidas excecionais – e questionáveis – seriam aceites sem o devido escrutínio, apelando ao medo e a um suposto espírito de equipe em tempos difíceis.
A falta de um sistema robusto e transparente para registar, compensar ou remuninar estas horas extras revelou-se um dos aspectos mais criticados da nova política. Os funcionários eram solicitados a trabalhar “à volante”, num regime de informalidade que violava flagrantemente as boas práticas laborais e, potencialmente, a legislação. Esta ausência de registo oficial não era um mero descuido, mas sim uma característica fundamental do sistema, pois impossibilitava a prestação de contas e tornava invisível o verdadeiro custo humano do projeto. Sem um processo formal de aprovação que exigisse o acordo mútuo entre colaborador e empregador, os desenvolvedores viam-se num limbo jurídico, onde o trabalho extra era ao mesmo tempo exigido e não reconhecido oficialmente.
As consequências desta política não se fizeram esperar. Relatos indicam que, já em maio de 2025, era comum encontrar equipes a realizar jornadas de trabalho de 10 horas ou mais. A linha que separava a vida profissional da pessoal tornou-se progressivamente mais ténue, com o prolongamento do horário a minar a energia, a criatividade e o bem-estar mental dos colaboradores. O “crunch” – períodos de trabalho intenso pontuais comuns na indústria – estava a ser transformado num estado permanente, uma condição crónica que levava ao esgotamento e à diminuição da qualidade de vida. A produtividade a longo prazo, paradoxalmente o objetivo da medida, ficava assim comprometida pela fadiga e pelo descontentamento generalizado.
Para além da sobrecarga quantitativa, a administração implementou um sistema subtil de pressão psicológica e vigilância para garantir a adesão à nova norma. De acordo com testemunhos, os managers passaram a “anotar os nomes” daqueles que se recusavam a cumprir as horas extras não oficialmente obrigatórias. Esta prática, ainda que nunca formalizada, criou uma cultura de medo onde a recusa em trabalhar além do horário era interpretada como falta de compromisso ou lealdade. Os colaboradores eram frequentemente interpelados e pressionados a justificar a sua decisão de cumprir o seu horário contratual, uma intimidação que violava o seu direito a desligar e transformava um ato normal numa suposta falta.
O carácter abusivo da medida é ainda mais evidente quando analisado à luz de situações pessoais específicas. Colaboradores com responsabilidades familiares, como um funcionário cuja esposa estava grávida e que, por isso, não podia dedicar horas extras, relataram ter sido alvo de ameaças veladas de despedimento. Estes casos ilustram como a política era profundamente insensível e inflexível, ignorando as circunstâncias individuais e punindo aqueles que priorizavam compromissos pessoais legítimos. A normalização das horas extras revelou-se, assim, um mecanismo de exclusão que penalizava a diversidade de situações de vida.
Em última análise, a normalização das horas extras na MercurySteam funcionou como um teste de lealdade distorcido. A direção, ao invés de resolver problemas de planeamento ou de recursos através de uma gestão mais eficiente, optou por extrair mais tempo dos seus colaboradores, tratando sintomas em vez de causas. Esta abordagem revela uma visão de curto prazo que, enquanto pode ter gerado um impulso temporário na produção, corroeu a confiança, o moral e a saúde da sua força de trabalho. A Caixa de Pandora estava aberta, e dela saíram não só a exploração e o cansaço, mas também a desconfiança, o ressentimento e uma crise de reputação que mancharia a imagem do estúdio perante a indústria e os fãs. O legado desta decisão não será medido em horas de trabalho, mas no talento que fugiu, na criatividade que foi sufocada e no custo humano de uma gestão considerada falha.
Pressão Psicológica e Cultura do Medo
Para além da sobrecarga de trabalho, os testemunhos apontam para a criação de uma cultura de medo e intimidação. Uma funcionária afirmou que a direção deixava claro que os nomes daqueles que se recusassem a fazer horas extras seriam “anotados”, e que eram frequentemente pressionados a justificar a sua recusa, apesar de não terem essa obrigação legal. Esta tática de pressão psicológica visava, na perceção dos empregados, assegurar a submissão colectiva e normalizar a exploração, aproveitando o período de vulnerabilidade pós-lançamento de Blades of Fire.
A empresa também terá aproveitado a fase crítica para “apertar a vis” noutros aspetos fundamentais do bem-estar laboral, como a flexibilidade de horários, a autorização para teletrabalho e a aprovação de dias de férias, restringindo ainda mais a autonomia e o equilíbrio entre vida pessoal e profissional dos seus colaboradores.
Licenciamentos Abusivos e Retaliação: O Preço de se Opor
A situação tornou-se ainda mais sombria com uma onda de demissões consideradas abusivas pelos funcionários e pelo sindicato CSVI. Os relatos são chocantes:
- Uma desenvolvedora viu o seu contrato durante o período de experiência ser terminado, suspeitando que a sua gravidez foi o motivo real.
- Outro empregado foi despedido no próprio dia por, de acordo com o sindicato, “opor-se abertamente a essas condições de trabalho e exigir explicações por escrito”.
- Um colaborador recebeu o que interpretou como uma ameaça de despedimento por não poder realizar horas extras durante a gravidez da sua esposa.
- Uma funcionária em licença médica prolongada por problemas de saúde mental relatou o início imediato de uma “campanha de assédio” por parte do seu manager. Ele terá repetido ao longo de um ano que ela seria despedida assim que regressasse, alegando que ela “não estava a usufruir da licença corretamente” por se recusar a divulgar os detalhes médicos privados que a justificavam.
O auge desta crise ocorreu em agosto de 2025, com o despedimento coletivo de 18 pessoas. Embora a fraca performance financeira de Blades of Fire possa ter sido o pretexto, o padrão e o timing das demissões sugerem uma purga de elementos considerados problemáticos ou dissidentes pela administração.
Claro, aqui está a continuação do artigo, abordando a reação do sindicato, a repercussão pública e o impacto na reputação do estúdio.
A Resposta Coletiva: O Papel do Sindicato CSVI e a Repercussão Pública
Perante a escalada de medidas consideradas abusivas, os funcionários da MercurySteam encontraram eco no sindicato CSVI (Sindicato de Videjuegos), que se tornou a voz coletiva para denunciar publicamente as práticas do estúdio. O papel do CSVI foi crucial em dar credibilidade e estrutura às queixas individuais, agregando os diversos testemunhos numa narrativa coesa e levando as preocupações dos trabalhadores para a esfera pública. A decisão de uma dúzia de empregados – atuais e antigos – de falar de forma anónima com o meio especializado 3DJuegos demonstra não apenas o medo de retaliação, mas também a gravidade da situação, onde a insatisfação interna transbordou para os holofotes.
A publicação da reportagem pelo 3DJuegos funcionou como um detonador, fazendo com que a crise de gestão interna se transformasse numa crise de imagem perante a comunidade internacional de jogadores e a indústria. A história rapidamente se propagou por fóruns e redes sociais, manchando a reputação de um estúdio que, pouco tempo antes, era aclamado pela sua competência técnica em Metroid Dread. A reação dos fãs e de profissionais do setor foi majoritariamente de apoio aos desenvolvedores e de censura à administração da MercurySteam, colocando em xeque a ética e a sustentabilidade do seu modelo de produção.
Impacto na Marca Empregadora e no Futuro do Estúdio
A exposição negativa tem um custo tangível a longo prazo: a marca empregadora da MercurySteam foi severamente prejudicada. Em uma indústria global e competitiva que vive da criatividade e do talento, a percepção de ser um local de trabalho tóxico é um enorme repelente para profissionais qualificados. A fuga de cérebros – seja por demissões voluntárias ou pelos licenciamentos controversos – e a dificuldade em atrair novos talentos podem ser um golpe mais duradouro do que qualquer fracasso comercial pontual de um jogo.
O caso da MercurySteam serve como um alerta para a indústria de jogos, que historicamente enfrenta crises relacionadas com “crunch” (períodos de trabalho intenso e excessivo) e burnout. A transparência, o diálogo social e o respeito pelos direitos laborais mostram-se não apenas como obrigações éticas, mas como fatores críticos para a sustentabilidade de um estúdio. A forma como a MercurySteam lidará com esta crise – se com mudanças genuínas na sua cultura corporativa ou com um aprofundamento da sua postura defensiva – definirá o seu trajecto nos próximos anos. Enquanto isso, os desenvolvedores pagam o preço humano por uma gestão considerada falha, e o legado de Blades of Fire fica para sempre associado a esta turbulência nos bastidores.