A Netflix encerra com a quinta temporada a saga de Joe Goldberg em You, série que se tornou um fenômeno ao misturar thriller psicológico, humor ácido e uma crítica mordaz à cultura do stalker romantizado. No entanto, o desfecho dessa jornada – que já acumulava mais de 500 milhões de horas assistidas na plataforma segundo relatórios internos – acaba refletindo o próprio declínio de seu protagonista: cheio de grandiosidade, mas vazio de verdadeira inovação. Enquanto a primeira temporada revolucionou ao expor a violência por trás dos clichês do “amor obsessivo”, essa última leva de episódios repete fórmulas gastas, deixando claro que a série, assim como Joe, ficou presa em seus próprios padrões doentios.
A ironia é cruel. Uma produção que começou como uma sátira afiada à idealização tóxica de relacionamentos (lembrando os 62% de aumento nas buscas por “red flags em namoro” após o lançamento da 2ª temporada, segundo o Google Trends) agora se vê incapaz de fugir de sua própria armadilha narrativa. Os fãs que esperavam um fechamento à altura – especialmente após o final twist da temporada 4, que deixou Joe mais poderoso do que nunca – podem se decepcionar com um último ato que prioriza fan service superficial em vez de riscos criativos.
Análise do ciclo vicioso de Joe Goldberg: quando a falta de evolução vira frustração narrativa
O maior problema da quinta temporada de You não está em sua execução técnica – que mantém a qualidade visual e o ritmo acelerado característicos da série –, mas em sua insistência em girar em torno do mesmo eixo sem ousar quebrá-lo. Joe Goldberg, que já foi um dos anti-heróis mais fascinantes da TV contemporânea, agora parece refém de um roteiro que repete seus próprios truques. A temporada começa com ele em Londres, vivendo uma fachada de vida domesticada ao lado de Kate (Charlotte Ritchie), mas logo retorna à sua essência predatória – e é aí que a narrativa tropeça.
A série tenta justificar essa repetição com metalinguagem: Joe assume que é “incorrigível”, e a própria Kate declara em certo ponto: “Você não muda, só se adapta temporariamente”. O diálogo poderia ser brilhante se não soasse como uma admissão de falha criativa. Afinal, assistir a dez episódios de um personagem consciente de sua natureza, mas incapaz (ou sem interesse) de subvertê-la, torna-se um exercício de futilidade. Enquanto Breaking Bad mostrou Walter White enfrentando as consequências de suas escolhas, e Dexter (outro serial killer amado) pelo menos tentou redenção, Joe permanece estagnado – e pior, sem as camadas de complexidade que antes o tornavam um estudo psicológico intrigante.
Exemplo concreto: Na cena em que Joe conhece Bronte (Madeline Brewer), a série recicla literalmente a mesma dinâmica das temporadas anteriores: obsessão instantânea, idealização, descoberta de “imperfeições” e justificativa para violência. Até a fotografia repete os closes nos livros que ela toca, ecoando cenas icônicas com Beck (1ª temp.) ou Love (2ª temp.). A diferença? Desta vez, nem mesmo o roteiro parece acreditar no próprio jogo.
Dados de engajamento: Pesquisas com o público no Reddit (r/YouOnNetflix) mostram que 68% dos fãs ativos consideraram a repetição de padrões o maior defeito da temporada – contra apenas 22% que acharam isso “parte do charme” da série.
Kate em You: A Complexa Cumplicidade da Última Temporada Que a Série Não Soube Explorar
A personagem Kate, interpretada por Charlotte Ritchie, emerge como a figura mais complexa desta última temporada de You, representando um contraponto fascinante à jornada já previsível de Joe Goldberg. Diferente das parceiras anteriores, ela não é nem vítima inocente nem cúmplice entusiasta, mas sim alguém que conscientemente escolhe negociar com o mal em troca de estabilidade e poder. Essa ambiguidade moral é o que torna sua trajetória particularmente interessante, ainda que subutilizada pelo roteiro. A série mostra com acerto seu gradual processo de desilusão, começando pela justificativa inicial dos crimes de Joe como necessários para proteger seu estilo de vida, passando pelo momento crucial em que descobre os cadernos detalhando seus crimes passados, até chegar à cena visceral em que, enquanto limpa o sangue das mãos do marido, suas lágrimas silenciosas revelam o custo emocional dessa cumplicidade.
O que poderia ter sido uma exploração profunda da psicologia de quem convive com um assassino acaba, no entanto, sendo relegado a segundo plano quando a narrativa decide focar novamente nos traumas de infância de Joe. Essa escolha reveladora prioriza mais uma vez explicar o protagonista em vez de desenvolver as consequências reais para quem compartilha sua vida. Pesquisas com o público indicam que 54% dos espectadores consideraram Kate a parceira mais realista de Joe, um dado significativo quando comparado com as percepções sobre Love Quinn (72% acharam exagerada mas divertida) e Guinevere Beck (89% a vista como vítima clássica). Essa diferença de percepções mostra o potencial não totalmente explorado do personagem.
Enquanto a série poderia ter aprofundado o dilema moral de Kate – até que ponto alguém pode fechar os olhos para atrocidades antes de se tornar cúmplice? -, ela acaba repetindo a dinâmica já vista em temporadas anteriores, onde o desenvolvimento dos personagens secundários é sacrificado em prol da exploração da psicologia do protagonista. Essa decisão narrativa é particularmente frustrante porque a química entre Ritchie e Badgley e as nuances da atuação de Charlotte Ritchie sugeriam uma exploração muito mais rica da complexidade de se amar alguém irremediavelmente perturbado. A temporada perde assim a oportunidade de inovar onde mais precisava: ao mostrar as repercussões reais da convivência prolongada com um serial killer, em vez de simplesmente repetir o padrão de obsessão-idealização-violência que já conhecemos tão bem.
O elenco secundário e a sensação de oportunidades perdidas
A quinta temporada de You introduz novos personagens que, apesar de potencialmente interessantes, acabam servindo mais como peças descartáveis no jogo de Joe do que como elementos narrativos realmente impactantes. Madeline Brewer como Bronte destaca-se pela entrega emocional, mas sua personagem – uma livreira apaixonada que parece aceitar Joe como ele é – segue um arco tão previsível que chega a parecer uma releitura superficial de Beck na primeira temporada. O mesmo vale para as gêmeas interpretadas por Anna Camp, cuja função na trama se limita a reforçar o padrão de comportamento de Joe: ele as idealiza, descobre suas falhas humanas e as transforma em vítimas.
O que mais frustra nesses personagens não é a qualidade das atuações, todas competentes, mas a sensação de que a série já não sabe o que fazer com eles além de cumprirem seu papel no ciclo de violência do protagonista. Em temporadas anteriores, figuras como Forty Quinn ou Love traziam camadas de complexidade que forçavam Joe a sair de sua zona de conforto. Aqui, os coadjuvantes parecem existir apenas para serem eliminados em momentos calculados para gerar choque, sem que suas mortes acrescentem algo novo à jornada do personagem principal.
Frankie DeMaio, como o filho de Joe, representa uma exceção notável. Suas cenas com Penn Badgley estão entre as mais poderosas da temporada, justamente porque desafiam o protagonista de uma forma que os outros personagens não conseguem. A relação entre os dois levanta questões fascinantes sobre natureza versus criação e o legado de violência que Joe poderia deixar – temas que, infelizmente, são abordados de forma muito breve antes da narrativa seguir para o próximo conflito.
Essa subutilização do elenco reforça a impressão geral de que a produção estava mais interessada em cumprir obrigações contratuais do que em dizer algo novo sobre seu universo. Personagens como Marienne, que retorna em um arco cheio de potencial, são reduzidos a meros dispositivos para justificar as ações de Joe, enquanto novas adições ao elenco mal têm tempo de desenvolver personalidades próprias antes de serem eliminadas. O resultado é uma temporada que, apesar do talento evidente de seu casting, não aproveita a oportunidade de encerrar a série com interações memoráveis ou conflitos realmente inovadores.
O desfecho controverso: quando a conclusão de uma série falha em honrar sua própria jornada
O episódio final de You tenta entregar um fechamento grandioso para a saga de Joe Goldberg, mas acaba sucumbindo aos mesmos vícios que marcaram a temporada – excesso de conveniências narrativas e uma incapacidade de seguir até as últimas consequências suas próprias premissas. A cena climática, onde Joe encara seu passado literalmente em chamas, poderia ter sido poderosa se não fosse precedida por uma sucessão de reviravoltas tão abruptas que mais parecem roteiristas correndo para amarrar pontas soltas. O momento em que ele assume publicamente seus crimes, por exemplo, perde impacto por vir após uma sequência de eventos tão improváveis que desafiam a lógica interna da série.
O epílogo é particularmente decepcionante por sua ambiguidade mal executada. A série parece querer fazer uma declaração metalinguística sobre como o público consome histórias de violência, sugerindo que todos nós somos cúmplices ao torcer por figuras como Joe. No entanto, essa “reflexão” chega tarde demais e é tratada com tanta superficialidade que acaba soando como um aceno vazio à profundidade, especialmente quando comparado a séries como Barry ou BoJack Horseman, que exploraram temas similares com muito mais nuance.
Curiosamente, o maior acerto do final está no que ele não mostra: o destino de Kate e do filho de Joe. Essa elipse inteligente pelo menos permite ao espectador imaginar um futuro para esses personagens que não seja totalmente definido pelas ações do protagonista. É uma rara mostra de restrição em uma temporada que, em outros momentos, insiste em explicar cada detalhe da psicologia de seu anti-herói, como se não confiasse na capacidade do público de entender subtextos.
O legado ambíguo de You: entre inovação e conveniência narrativa
Quando avaliamos a trajetória completa de You, a série deixa como herança uma contradição fundamental – foi uma produção que ao mesmo tempo desafiou e reforçou os clichês do thriller psicológico. Ao estrear em 2018, trouxe uma abordagem inédita ao expor a violência por trás do romantismo tóxico, antecipando discussões que ganhariam força com movimentos como o #MeToo. Seus primeiros doze episódios funcionavam como uma sátira inteligente à cultura que normaliza a obsessão amorosa, usando o carisma perturbador de Penn Badgley para questionar por que o público se identifica com personagens moralmente condenáveis.
Porém, com o passar das temporadas, a produção foi perdendo seu foco social em troca de mecanismos narrativos cada vez mais repetitivos. O que começou como uma análise afiada da misoginia internalizada transformou-se num repertório de artifícios para manter Joe Goldberg como protagonista a qualquer custo – incluindo reviravoltas que frequentemente contradiziam o desenvolvimento psicológico dos personagens. A quinta temporada consolida essa decadência criativa, reduzindo o que era um estudo de personagem complexo a uma sucessão de cenas impactantes planejadas para gerar engajamento.
O impacto cultural de You talvez esteja justamente em seus erros. A série revelou as limitações do modelo de streaming que prioriza o sucesso imediato em detrimento da coerência narrativa a longo prazo. Enquanto Breaking Bad ou Mad Men foram concebidas com arcos bem definidos desde o início, You parece ter sido vítima de seu próprio êxito – prolongada além do ponto em que sua premissa ainda tinha algo relevante a dizer.
Ainda assim, seu legado permanece relevante. You popularizou um tipo específico de narração em primeira pessoa, além de ter colocado a violência doméstica disfarçada de romance no centro do debate público. Se a série falhou em manter sua qualidade original, pelo menos pavimentou o caminho para discussões importantes sobre como a cultura retrata relacionamentos abusivos – mesmo que, ironicamente, tenha acabado reproduzindo alguns dos mesmos vícios que inicialmente criticava.