Por Que Hideo Kojima Diz Que Jogos Não São Arte – E Por Que Ele Pode Estar Errado

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 A discussão sobre se jogos são ou não arte é um debate antigo e polarizado. Enquanto alguns defendem que jogos são a forma de arte mais completa do século XXI, outros, como Hideo Kojima, afirmam que são apenas entretenimento. Em um trabalho acadêmico que coautorei, analisamos mais de 40 perspectivas de filósofos, artistas e desenvolvedores—de Platão a Kojima—e chegamos a uma conclusão: a definição de “arte” é tão flexível que cada pessoa pode chegar a respostas diferentes.

Por Que Hideo Kojima Diz Que Jogos Não São Arte – E Por Que Ele Pode Estar Errado
Jogos são arte? Entenda os limites entre entretenimento e expressão artística através de exemplos como Bioshock e Journey.

Mas se jogos, por natureza, não são arte, isso não significa que não possam ser usados artisticamente. A chave está em entender as definições e como a linguagem molda esse debate.

Definindo Arte: Por Que Nem Tudo Que o Homem Cria é Artístico

A noção de que tudo criado pelo ser humano é arte surge de uma definição excessivamente ampla e pouco útil. Se considerarmos arte qualquer objeto ou ação produzida por mãos humanas, então desde um parafuso até um manual de instruções seriam obras artísticas – e isso esvazia completamente o significado da palavra. A arte, para ter relevância como conceito, precisa carregar uma intenção que vá além da mera fabricação ou funcionalidade. Um martelo é uma ferramenta engenhosa, mas não é arte; já uma escultura que representa o trabalho braçal pode ser, pois comunica algo além de sua utilidade prática.

Uma das confusões mais comuns nesse debate é a ideia de que habilidade técnica equivale a expressão artística. Um marceneiro pode criar móveis perfeitamente simétricos e funcionais, mas isso não os torna arte por si só. Da mesma forma, um programador pode desenvolver um algoritmo complexo sem que ele seja considerado uma obra de arte. O que diferencia a arte da mera técnica é a presença de uma mensagem, um ideal ou uma emoção que transcende a materialidade do objeto. Quando um artesão transforma madeira em uma cadeira, está resolvendo um problema prático; quando esculpe a mesma madeira em uma figura que evoca melancolia, está criando arte.

Outro equívoco frequente é associar arte exclusivamente ao belo ou ao agradável. Muitas obras artísticas são deliberadamente perturbadoras, feias ou desafiadoras justamente porque buscam comunicar algo além da estética convencional. O que as define como arte não é sua beleza, mas sua capacidade de transmitir uma visão de mundo. Um grafite pichado em um muro pode ser vandalismo se feito aleatoriamente, mas se carrega uma crítica social ou uma reflexão pessoal, pode ser arte. A diferença está na intenção por trás do ato, não apenas no resultado visual.

Também é importante distinguir entre arte e artesanato. Enquanto o artesanato prioriza a funcionalidade e a repetição de técnicas tradicionais, a arte busca a singularidade e a expressão individual. Um vaso de cerâmica produzido em série para venda não é necessariamente arte, mas um vaso único, moldado para representar a visão do ceramista sobre a fragilidade humana, pode ser. A arte exige que o criador imponha sua subjetividade de maneira que provoque reflexão ou emoção no observador.

Além disso, a arte não pode ser totalmente democrática no sentido de que qualquer coisa possa ser considerada artística só porque alguém declara que é. Se não houver critérios mínimos – como intencionalidade, comunicação de um ideal e capacidade de provocar reações interpretativas –, a palavra “arte” perde completamente seu significado. Uma pedra comum no chão não é arte, mas se um artista a coloca em um museu com o propósito de questionar o valor atribuído a objetos cotidianos, então ela se torna parte de uma expressão artística. O contexto e a intenção transformam o ordinário em algo que merece ser pensado como arte.

A arte não precisa ser profunda ou complexa para ser válida, mas precisa carregar alguma forma de significado além de sua existência física. Um desenho infantil pode ser arte se expressar a maneira única como a criança vê o mundo, enquanto um desenho técnico de engenharia, por mais preciso que seja, não o é – a menos que seja usado em uma instalação que critique a frieza da industrialização. A arte, portanto, não está no objeto em si, mas no que ele representa e como é capaz de dialogar com quem o experiencia.

Jogos Como Sistemas de Incentivos (e Por Que Isso os Diferencia da Arte)

Os jogos, em sua essência, são estruturas construídas em torno de sistemas de incentivos – mecanismos que moldam o comportamento do jogador através de recompensas, desafios e feedbacks imediatos. Essa natureza sistêmica os diferencia radicalmente da arte, que não exige interação funcional ou objetivos mensuráveis para cumprir seu propósito. Enquanto uma pintura ou um poema existem para serem contemplados e interpretados, um jogo demanda ação, decisão e engajamento com suas regras. Se removêssemos os incentivos de um jogo – como pontuação, progressão ou vitória –, ele perderia sua razão de ser, ao passo que uma obra de arte mantém seu valor mesmo sem qualquer funcionalidade prática.
A mecânica básica de qualquer jogo, desde os mais simples até os mais complexos, gira em torno de estímulos e respostas. Quando um jogador coleta moedas em um plataforma, derrota inimigos em um RPG ou constrói estratégias em um jogo de tabuleiro, está reagindo a um sistema projetado para guiar sua experiência de forma direcionada. Esse design intencional de recompensas e punições é o que define o jogo como um sistema fechado de interações, não como uma expressão artística aberta à subjetividade pura. Enquanto a arte convida à reflexão individual, os jogos buscam engajar o jogador em uma estrutura de causa e efeito que pode até conter elementos estéticos, mas não depende deles para funcionar.
Outro aspecto fundamental é que os jogos são, antes de tudo, experiências governadas por regras. Essas regras não existem para transmitir um ideal ou emoção, mas para criar um ambiente de desafio e superação. Um jogo como xadrez não é arte porque suas peças são belas ou porque seu tabuleiro evoca algum significado profundo, mas porque oferece um sistema de possibilidades estratégicas que os jogadores exploram dentro de limites bem definidos. A genialidade do xadrez está em sua mecânica, não em sua capacidade de comunicar algo além de si mesmo – e é isso que o torna um jogo, não uma obra de arte.
Além disso, os jogos frequentemente priorizam a repetição e a otimização, algo alheio ao propósito da arte. Um jogador pode repetir a mesma fase inúmeras vezes para aperfeiçoar sua performance, buscando eficiência ou recordes, enquanto a arte não é feita para ser “vencida” ou “melhorada”. Uma sinfonia não se torna mais valiosa por ser executada com maior velocidade, assim como um filme não é julgado pela quantidade de cenas que o espectador consegue memorizar. Os jogos, porém, são avaliados por sua jogabilidade, balanceamento e capacidade de manter o jogador motivado – critérios que nada têm a ver com expressão artística.
Vale ressaltar que muitos jogos incorporam narrativas e elementos visuais impressionantes, mas esses recursos servem para enriquecer a experiência lúdica, não para redefinir sua natureza central. Um jogo como Dark Souls pode ter uma atmosfera profundamente simbólica e uma lore rica, mas o que realmente o define é seu sistema de combate desafiador e a forma como pune e recompensa o jogador. Se removêssemos sua dificuldade característica, restaria apenas uma ambientação interessante – mas não um jogo. A arte, por outro lado, não perde sua essência se for fácil ou difícil de consumir; sua força está no que comunica, não no que exige do espectador.
A noção de vitória ou fracasso é outro divisor de águas entre jogos e arte. Em um jogo, há sempre um objetivo claro a ser alcançado, mesmo que seja simplesmente “sobreviver o máximo possível”. Já a arte não possui um “estado de vitória” – uma pintura não é mais ou menos bem-sucedida dependendo de como o observador reage a ela. Essa ausência de metas mensuráveis é o que permite à arte existir como um meio de expressão pura, enquanto os jogos são, em última análise, sistemas que recompensam o domínio de suas próprias regras. A arte questiona; os jogos desafiam. E é nessa distinção fundamental que reside a diferença entre os dois.

Quando um Jogo Se Torna Arte? Exemplos como “Passage” e “Bioshock”

A fronteira entre jogos e arte se torna mais difusa quando um jogo transcende sua função de entretenimento e passa a operar como veículo de expressão artística. Isso ocorre quando o sistema de incentivos, característico dos jogos, é subordinado a uma intenção comunicativa mais profunda. Passage, criado por Jason Rohrer, é um exemplo paradigmático: em apenas cinco minutos de jogo, ele encapsula uma reflexão poética sobre a passagem do tempo, as escolhas afetivas e a inevitabilidade da morte. Seu minimalismo gráfico e sua mecânica deliberadamente restritiva não existem para desafiar o jogador, mas para conduzi-lo a uma experiência contemplativa – mais próxima de um poema visual interativo do que de um jogo tradicional.
Bioshock, por sua vez, eleva-se à condição de arte não por sua jogabilidade, mas pela forma como subverte as expectativas do medium para criticar filosofias políticas e a ilusão do livre-arbítrio. A cidade subaquática de Rapture, com sua estética art déco em ruínas, funciona como uma distopia randiana tangível, onde o discurso libertário de seu fundador, Andrew Ryan, desmorona junto com as estruturas físicas e morais da sociedade que criou. O momento em que o jogo quebra a quarta parede para revelar ao jogador que ele nunca teve verdadeira agência – “Um homem escolhe, um escravo obedece” – é uma metalinguagem que só funciona porque o medium dos jogos permite essa interação irônica entre jogador e narrativa. Aqui, os sistemas de incentivos são usados contra o próprio jogador, transformando a mecânica em crítica.
O que diferencia esses exemplos de jogos puramente lúdicos é a inversão de prioridades: em vez de a narrativa e a estética servirem ao sistema de jogo, o sistema é colocado a serviço de uma ideia maior. Journey, por exemplo, elimina quase toda a interface tradicional e a comunicação verbal para criar uma experiência emocional sobre conexão e transcendência. Seus elementos interativos – como o voo e os símbolos musicais – não são desafios a serem superados, mas metáforas sensoriais que aproximam o jogo de uma meditação interativa. A ausência de competição ou falha possível reforça que o objetivo não é vencer, mas vivenciar.
Esses casos demonstram que um jogo se torna arte quando sua interatividade deixa de ser um fim em si mesma e passa a ser um meio para provocar reflexão. Papers, Please, com sua burocracia opressiva simulada, usa a repetição mecânica de carimbar vistos para imergir o jogador na angústia moral de um funcionário de um regime totalitário. Cada decisão trivial sobre quem entra ou não no país ganha peso ético porque o jogo força o jogador a participar ativamente de seu próprio desconforto. A arte emerge não do ato de jogar, mas do que o ato de jogar revela sobre condição humana.
Contudo, é crucial notar que mesmo esses exemplos não abandonam completamente sua natureza lúdica – eles a ressignificam. The Stanley Parable questiona a ilusão de escolha nos jogos enquanto depende dessa mesma ilusão para existir. Sua genialidade está em usar as convenções do medium contra si mesmas, expondo as expectativas do jogador como parte de uma crítica mais ampla sobre narrativa e agência. Esse tipo de obra não nega que jogos são sistemas, mas demonstra que tais sistemas podem ser ferramentas para algo maior – assim como a tinta não é arte, mas pode se tornar pintura nas mãos certas. A diferença está na intenção que transforma o meio em mensagem.
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