Ready or Not e sua Cidade Problematica, A História de Los Sueños

Ready or Not e sua Cidade Problematica, A História de Los Sueños

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Los Sueños, a cidade fictícia de Ready or Not, é mais do que um pano de fundo para operações policiais brutais—é um espelho distorcido de crises urbanas reais, amplificadas até o absurdo. Desde suas origens mesoamericanas até os desastres modernos, a narrativa da cidade revela um ciclo vicioso de violência, corrupção e falhas institucionais que ecoam problemas reais, como colapsos ambientais, greves e militarização da polícia. Mas será que Los Sueños é apenas uma crítica à decadência social ou um alerta sobre como o caos pode ser instrumentalizado para justificar o autoritarismo? A cidade, construída sobre traumas antigos e alimentada por negligência moderna, parece destinada a repetir seus erros—ou pior, a transformá-los em política.

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Políciais atuantes em Los Sueños (Overcentral)

Colapso Ambiental como Ferramenta de Controle

Los Sueños apresenta um cenário onde o colapso ambiental não é apenas um pano de fundo, mas uma ferramenta ativa de manipulação social. A seca prolongada que assola a cidade não é tratada como uma emergência climática a ser resolvida, mas como um fato inevitável que serve para justificar racionamentos extremos e o controle estatal sobre recursos básicos. A escassez de água, em vez de unir a população em busca de soluções, aprofunda divisões sociais, criando um ambiente onde apenas quem tem poder econômico ou político consegue acesso a necessidades básicas, enquanto o resto da população é deixado à própria sorte.

Os incêndios florestais que consomem o entorno da cidade não são combatidos com políticas preventivas ou investimento em infraestrutura, mas são usados como espetáculo midiático para reforçar a narrativa de que Los Sueños está sob constante ameaça. A imprensa controlada pelo estado amplifica cada tragédia, transformando desastres naturais em justificativas para medidas de exceção. O resultado é uma população permanentemente assustada, disposta a abrir mão de liberdades em troca de uma segurança que nunca se materializa de fato.

O furacão Antonio, um dos eventos mais devastadores da história recente da cidade, poderia ter sido um momento de reconstrução e solidariedade. Em vez disso, foi a desculpa perfeita para a implementação de toques de recolher obrigatórios, ocupações militares em bairros inteiros e a suspensão temporária de direitos constitucionais. A destruição causada pelo furacão não foi remediada com planos de habitação ou assistência social, mas com a instalação de checkpoints policiais e a expansão de sistemas de vigilância em áreas afetadas. A tragédia natural, assim, se transformou em oportunidade política.

A crise energética segue a mesma lógica perversa. O ataque terrorista à usina hidrelétrica, que poderia ter sido um incidente isolado, tornou-se o pretexto para anos de apagões controlados e racionamento de energia. Esses blecautes não são distribuídos de forma igualitária: bairros ricos mantêm seu fornecimento estável, enquanto comunidades pobres ficam dias sem eletricidade, mergulhando ainda mais no caos. A falta de energia não é um acidente, mas uma estratégia para manter certas áreas da cidade sob controle através da privação.

Até mesmo o lixo acumulado nas ruas, consequência da greve dos trabalhadores de saneamento, serve a um propósito maior. A sujeira e as doenças que se espalham não são tratadas como um problema de saúde pública, mas como uma demonstração visível do que acontece quando a população “exige demais”. O estado permite que a situação se degrade ao extremo para depois apresentar a militarização como única solução possível. A mensagem é clara: sem a mão firme do governo, a sociedade desmorona.

O mais perturbador é como esse ciclo se retroalimenta. Cada nova crise ambiental é seguida por uma resposta estatal que, em vez de resolver a raiz do problema, apenas concentra mais poder nas mãos de poucos. A população, exausta e desesperada, acaba aceitando medidas cada vez mais autoritárias, convencida de que não há alternativa. Los Sueños não está à beira do colapso por acidente—está sendo levada a ele de forma calculada, para que aqueles no poder possam ditar as regras do que vem depois.

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Mapa de Los Sueños (Overcentral)

Los Sueños comparado a Los Angeles: Ficção ou Profecia?

A inspiração em Los Angeles não é casual. Assim como sua contraparte real, Los Sueños enfrenta desigualdade extrema, criminalidade e um sistema policial militarizado. Mas enquanto LA luta contra esses problemas de forma fragmentada, a cidade do jogo os leva ao extremo, mostrando um futuro distópico onde o estado abraça abertamente o controle repressivo. A greve dos caminhoneiros de Debanco, por exemplo, paralisa a economia e empurra cidadãos à criminalidade—um cenário que ecoa protestos trabalhistas reais, mas com consequências hiperbólicas.

Los Sueños opera como uma versão caricatural e ao mesmo tempo assustadoramente familiar de Los Angeles, amplificando todos os problemas estruturais da metrópole real até transformá-los em elementos de uma distopia funcional. Enquanto LA enfrenta graves questões de desigualdade e violência policial, ainda mantendo certos mecanismos de resistência civil e accountability, a cidade fictícia elimina qualquer possibilidade de reforma, apresentando um cenário onde a degradação social não é um acidente, mas um projeto. A ficção aqui não inventa, apenas extrapola – e nessa extrapolação reside seu caráter profético.

A geografia alterada de Los Sueños, posicionada na fronteira com o México em vez da costa oeste, não é um detalhe irrelevante. Essa mudança estratégica permite que a narrativa explore tensões migratórias e conflitos de soberania com uma intensidade que a Los Angeles real, apesar de seus próprios dramas fronteiriços, nunca experimentou. Enquanto a ICE já é uma força controversa na vida americana contemporânea, em Los Sueños sua presença triplicada e brutal transforma a cidade numa zona de ocupação militarizada, onde a violência institucional não é denunciada, mas celebrada como necessária. A ficção aqui não prevê o futuro, apenas mostra aonde podem levar as tendências já em curso.

As greves que paralisam Los Sueños – dos trabalhadores de saneamento aos seguranças da Debanco – ecoam movimentos trabalhistas reais de Los Angeles, como as paralisações dos professores em 2019 ou as recentes greves dos roteiristas. Porém, na versão fictícia, essas manifestações não resultam em negociações ou melhorias, mas no colapso total de serviços essenciais e na consequente justificativa para intervenções draconianas. É como se o jogo perguntasse: e se todas as conquistas trabalhistas do século XX fossem sistematicamente desmontadas sem que a sociedade conseguisse reagir? Nesse aspecto, Los Sueños não é uma fantasia, mas um espelho deformado de tendências trabalhistas já visíveis em certos estados americanos.

A arquitetura decadente de Los Sueños, com seus prédios abandonados convertidos em delegacias e estações de trem transformadas em bases militares, segue uma lógica que Los Angeles conhece bem – a da ressignificação forçada de espaços urbanos. Enquanto a LA real vê hotéis serem convertidos em moradias temporárias para sem-teto e shopping centers abandonados virarem abrigos improvisados, a cidade fictícia leva esse processo ao extremo, mostrando como o fracasso das políticas habitacionais pode culminar na militarização do espaço público. A diferença é que, em Los Angeles, esses processos ainda encontram resistência comunitária; em Los Sueños, a resistência já foi esmagada há muito tempo.

A cultura de violência policial em Los Sueños parece diretamente inspirada nos piores excessos do LAPD, desde a era Rampart até os abusos contemporâneos. Porém, enquanto em Los Angeles há pelo menos a ilusão de mecanismos de controle interno e pressão popular por reformas, na cidade fictícia a polícia opera abertamente como uma força de ocupação, com orçamento ilimitado para armamento e nenhum para treinamento em desescalada. O que era subtexto na realidade torna-se texto na ficção: a ideia de que certas instituições não existem para servir, mas para dominar.

Até mesmo a crise imobiliária de Los Sueños parece uma versão acelerada daquela que assola Los Angeles há décadas. Enquanto a cidade real vê bairros inteiros sendo gentrificados e comunidades sendo deslocadas, na ficção esse processo já se completou – os pobres não estão sendo empurrados para as periferias, já foram confinados em zonas de calamidade pública onde o estado só entra com cassetetes e drones. A profecia aqui é clara: sem intervenções radicais, o urbanismo excludente não cria bairros ruins, cria cidades paralelas onde o contrato social já foi rompido.

O mais perturbador na comparação entre as duas cidades não são suas semelhanças, mas como Los Sueños revela os pontos de ruptura já existentes em Los Angeles. Quando o jogo mostra hospitais superlotados funcionando sem energia ou escolas fechadas virando quartéis policiais, não está inventando cenários – está combinando elementos díspares mas reais da vida americana em uma única narrativa coerente. A ficção aqui não mente, apenas reorganiza a verdade de forma que não possamos mais ignorar suas conexões. Los Sueños não é o futuro de Los Angeles – é seu presente visto através de um prisma que amplifica todas as contradições até que se tornem inegáveis.

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Cidade Los Sueños (Overcentral)

A Ascensão do Estado Policial e a Ilusão de Segurança em Los Sueños

O mais sinistro em Los Sueños não é a violência nas ruas, mas como ela é usada para justificar a erosão de liberdades. O LSPD, superarmado e subfinanciado, opera como um exército de ocupação, e o “Programa Cidades Mais Seguras” é essencialmente um manual de autoritarismo:

  • Vigilância biométrica (reconhecimento facial e digital) sem transparência.
  • Expansão do uso letal da força sob justificativas vagas (“cenários de alto risco”).
  • Parcerias com militares em operações domésticas, borrando a linha entre segurança pública e guerra.

É um ciclo perverso: o estado permite (ou ignora) a degradação social, depois oferece “proteção” em troca de liberdade.

Los Sueños representa a materialização de um pesadelo orwelliano onde a segurança se transformou no mantra que justifica todas as violações de direitos. O LSPD não é mais uma força policial no sentido tradicional, mas uma máquina de guerra voltada para dentro, contra a própria população que jurou proteger. Seus blindados patrulham bairros residenciais, seus snipers ocupam telhados de escolas, e seus interrogatórios acontecem em containers adaptados nas zonas mais pobres da cidade. Tudo isso é vendido como necessário, como o preço a pagar pela ordem em meio ao caos – mas a ordem nunca chega, apenas a repressão se sofistica.

A vigilância biométrica em Los Sueños opera num limbo jurídico assustador. Câmeras com reconhecimento facial escaneiam multidões em tempo real, cruzando dados com um banco de dados que inclui não só criminosos, mas ativistas, sindicalistas e qualquer um que tenha participado de protestos. Não há warrants judiciais, não há supervisão, apenas um sistema que marca cidadãos como ameaças em potencial baseado em algoritmos inescrutáveis. O mais perverso é que essa tecnologia foi inicialmente vendida como forma de agilizar processos burocráticos – até que um dia, sem aviso, tornou-se a principal ferramenta de controle social.

A doutrina do “uso progressivo da força” foi completamente abandonada em Los Sueños. Hoje, os manuais do LSPD autorizam disparos letais contra suspeitos que simplesmente façam movimentos bruscos, que mantenham as mãos nos bolsos, ou que estejam em áreas designadas como “de alto risco” – categoria que abrange praticamente todos os bairros pobres da cidade. Os relatórios policiais estão padronizados para sempre incluir a frase “o suspeito representava uma ameaça iminente”, tornando qualquer revisão de conduta uma mera formalidade. O resultado é uma geração que cresceu vendo corpos no chão e aprendendo que questionar um policial é risco de vida.

As joint operations com as forças armadas marcam o estágio final da militarização da segurança pública. Os mesmos tanques que rodavam em zonas de guerra no Oriente Médio agora patrulham as avenidas de Los Sueños, com soldados treinados para guerra assimétrica aplicando táticas de contra-insurgência em favelas. A linguagem mudou junto – não se fala mais em “comunidades”, mas em “territórios hostis”; os civis não são cidadãos, mas “elementos populacionais”; e cada operação é chamada de “missão”, como se a cidade fosse um campo de batalha a ser conquistado.

O Programa Cidades Mais Seguras é um monumento à hipocrisia autoritária. Enquanto anuncia “modernização” e “eficiência”, seu cerne é a institucionalização da violência de Estado. Seus painéis de controle mostram estatísticas manipuladas para provar que a criminalidade caiu – ignorando que os crimes cometidos pela polícia não entram nas planilhas, e que grande parte da população agora tem medo até de registrar boletins de ocorrência. As poucas câmeras corporais que existem são constantemente “desativadas por falhas técnicas” nos momentos mais convenientes, criando um vácuo de provas que sempre beneficia a narrativa oficial.

A genialidade perversa do sistema em Los Sueños está em como ele transformou vítimas em cúmplices. Bairros de classe média aceitam checkpoints e revistas aleatórias porque acreditam que isso mantém “os elementos perigosos” longe de suas ruas. Empresários financiam milícias privadas porque a polícia formal está muito ocupada ocupando favelas. Até mesmo alguns moradores de comunidades carentes, exaustos pela violência, começam a ver a presença militarizada como mal necessário – sem perceber que estão pedindo por mais do veneno que os está matando.

Os protestos que ainda ocorrem em Los Sueños são espetáculos cuidadosamente coreografados. O LSPD permite que aconteçam em áreas designadas, sob pesada vigilância, com participantes pré-selecionados através de sistemas de crédito social. Qualquer manifestação que saia do roteiro é imediatamente esmagada não apenas com gás lacrimogêneo e balas de borracha, mas com prisões preventivas, desaparecimentos temporários e processos judiciais que arruínam financeiramente os dissidentes. A mensagem é clara: você pode reclamar, mas apenas dentro dos limites que nós determinarmos.

A ironia final é que Los Sueños nunca esteve tão insegura. Com cada nova medida de “endurecimento”, o crime organizado se sofistica, as milícias crescem, e a população aprende a temer mais a polícia do que os criminosos. As estatísticas oficiais mostram quedas fictícias nos índices de violência, enquanto os necrotérios ficam abarrotados de corpos não identificados e as prisões superlotadas transbordam de detidos sem acusação formal. Segurança, em Los Sueños, não é um resultado a ser alcançado – é um mito a ser vendido, uma desculpa eterna para a expansão infinita do poder.

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