Será possível consumir arte de forma completamente neutra? Essa pergunta, que parece simples, tem gerado debates acalorados no mundo dos animes e mangás. Nos últimos anos, a ideia de que “toda arte é política” ganhou força, especialmente em meio a discussões sobre representatividade, feminismo, crítica social e até mesmo a escolha de não abordar certos temas. Muitos fãs argumentam que obras de entretenimento, como shonens e romances leves, deveriam ser apenas uma fuga da realidade — mas será que essa própria fuga não é, em si, um ato político? Neste artigo, exploramos como as narrativas visuais e textuais dos mangás e animes estão intrinsecamente ligadas ao contexto social, cultural e político de seus criadores — e por que ignorar essa dimensão é perder parte fundamental do que faz da arte… arte.
A Filosofia por Trás da Afirmação: O que Significa “Arte Política”?
Antes de mergulharmos nos exemplos concretos do universo otaku, é crucial desfazer um mal-entendido comum: achar que “arte política” se refere apenas a obras que defendem partidos, candidatos ou leis específicas. Na verdade, o conceito é muito mais amplo e sutil.
A política, neste contexto, diz respeito às relações de poder, aos valores sociais e às estruturas que organizam a nossa vida em comunidade. Toda obra de arte é criada por um indivíduo que foi moldado por um contexto social específico, com suas próprias visões sobre gênero, classe, raça, moral e justiça. Essas visões, conscientemente ou não, permeiam suas criações.
Um mangaká que decide como seus personagens femininos se vestem, um diretor de anime que escolhe qual classe social um herói representa, ou um roteirista que normaliza certos comportamentos em uma comédia romântica — todas são escolhas que carregam uma carga ideológica. A política não está apenas no conteúdo explícito, mas nas entrelinhas, nas omissões e até na recusa em tomar uma posição. Como bem colocado no texto original, a capacidade de se abster da política é, em si, um privilégio político.
Gene Bride (ジーンブライド, Jīn Buraido ): O Pessoal é Político
Gene Bride (ジーンブライド, Jīn Buraido ) é um exemplo inegável de mangá com uma lente feminista explícita. A autora, Hitomi Takano, declara ter se inspirado no livro “Sejamos Todos Feministas” para criar uma história que canaliza suas próprias experiências com a discriminação de gênero.
A obra não discute projetos de lei, mas expõe a violência sexista e a opressão estrutural que as mulheres enfrentam no dia a dia. Ela demonstra como o “pessoal é político” — ou seja, como questões individuais de relacionamentos, carreira e autoestima estão intrinsecamente ligadas a estruturas de poder maiores.
O Caso dos “Isekai” e a Fantasia Reacionária
Até mesmo o gênero mais escapista, o isekai (transportação para outro mundo), pode ser lido politicamente. Muitas narrativas isekai seguem uma fórmula em que um protagonista mediano do mundo real se torna excepcionalmente poderoso em um mundo de fantasia, frequentemente acumulando riqueza, poder e um harém de forma acrítica.
Essas histórias podem ser interpretadas como um reflexo de um desejo de escape das pressões e frustrações do capitalismo moderno. Elas frequentemente reforçam hierarquias sociais, glorificam o individualismo e apresentam visões problemáticas sobre consentimento e relações de poder, tudo sob o véu do mero entretenimento.
A Política da Forma: Por que o Shojo e o BL também Importam
A política não está apenas no enredo, mas também na própria natureza do meio. O mangá shojo, criado majoritariamente por e para mulheres e meninas, é um ato político em um setor de entretenimento que historicamente marginaliza vozes femininas.
O mesmo vale para os gêneros BL (Boys’ Love) e GL (Girls’ Love), que criam espaços para explorar afetos e sexualidades fora da norma heterocisnormativa. A existência desses gêneros em revistas comerciais é, por si só, uma afirmação sobre diversidade e representação. A escolha de uma autora em publicar uma história em uma revista shojo, por exemplo, já é um posicionamento sobre para quem ela quer falar e quais experiências ela considera válidas para serem contadas.
O Público e a Rejeição à Política: Por que Tanta Resistência?
Um dos fenômenos mais interessantes nesse debate é a resistência ativa de parte do fandom à leitura política de suas obras favoritas. Frases como “é só entretenimento” ou “não é tão profundo assim” são comuns e revelam uma desconexão entre o consumo e a crítica. Essa postura, no entanto, também é sintomática.
Para muitos fãs, animes e mangás funcionam como um refúgio – uma válvula de escape de um mundo já saturado de conflitos e discussões. A sugestão de que esse espaço seguro também está impregnado de ideologia pode ser recebida como uma invasão ou uma tentativa de “estraga-prazeres”. No entanto, é preciso distinguir: analisar as políticas de uma obra não significa necessariamente condená-la ou deixar de apreciá-la. Pelo contrário, pode ser um caminho para uma apreciação mais rica e consciente.
O incômodo, muitas vezes, surge quando a obra toca em feridas sociais que o espectador prefere não ver. Um personagem não-binário, uma crítica ao capitalismo ou a representação do racismo podem funcionar como um espelho para questões do mundo real, quebrando a fantasia de um Japão homogêneo e apolítico – uma visão orientalista que muitos fãs ocidentais cultivam.
“Cool Japan”: O Anime como Soft Power e Ferramenta Geopolítica
A dimensão política do anime e do mangá transcende o conteúdo das obras e chega ao nível estadual. A iniciativa “Cool Japan”, lançada pelo governo japonês na década de 2000, é um exemplo claro de como a cultura pop é estrategicamente usada como soft power (poder brando).
O objetivo é projetar uma imagem positiva e moderna do Japão para o mundo, fortalecendo sua influência cultural e econômica. Ao exportar animes e mangás, o país não só gera lucro, mas também molda a percepção global sobre sua sociedade, suavizando questões históricas controversas e promovendo um nacionalismo cultural. Nesse contexto, até mesmo um slice of life despretensioso cumpre um papel político ao servir como embaixador de uma certa “japonidade” idealizada.
A Crítica como Forma de Respeito
Afirmar que “toda arte é política” não é um julgamento de valor, mas um convite à profundidade. Reconhecer as camadas políticas, sociais e ideológicas em “One Piece”, “Attack on Titan” ou em um mangá de ídolos como “Tokimeki Tonight” não é estragá-los. É, na verdade, engajar com eles em seu nível mais completo, honrando a complexidade do trabalho criativo.
Aceitar que nossos objetos de entretenimento favoritos são produtos de seu tempo e de visões de mundo específicas nos torna consumidores mais críticos e culturalmente empáticos. Podemos continuar nos divertindo, mas com a consciência de que, mesmo no mundo colorido dos animes, estamos dialogando com as mesmas forças sociais que moldam a nossa própria realidade. O escapismo é legítimo, mas a compreensão é transformadora.
