No cenário atual do streaming, poucas produções conseguem ir além do mero entretenimento e se consolidar como verdadeiros espelhos da condição humana e da história. “O Eternauta” da Netflix, uma obra-prima que transcende a ficção científica apocalíptica, surge não apenas como um espetáculo visual de tirar o fôlego, mas como uma crítica contundente ao imperialismo e à opressão, tecendo uma narrativa tão complexa quanto cativante. Prepare-se para desvendar as camadas mais profundas dessa produção argentina que, com sua impecável direção e atuações memoráveis, nos convida a uma reflexão urgente sobre resistência e humanidade, solidificando seu lugar no topo das discussões sobre o futuro do entretenimento e seu impacto cultural.
Por Trás da Neve Tóxica: A Opressão Simbólica e a Genialidade Narrativa
A premissa de “O Eternauta” nos imerge em um cenário de apocalipse singular, onde uma nevasca tóxica transforma o cotidiano em um pesadelo gelado. No entanto, a genialidade da obra reside em ir muito além do espetáculo de uma invasão alienígena. A série, com sua ambientação na Argentina, se estabelece como uma poderosa alegoria sobre o imperialismo e a opressão. O autor, Héctor Germán Oesterheld, habilmente utiliza os alienígenas como um símbolo do regime imperialista e de um inimigo que o povo precisa resistir. Essa escolha narrativa não é acidental, mas sim um reflexo de uma realidade política latente na Argentina, transmitindo a crítica de forma sutil e fictícia.
É nesse ponto que a profundidade da série se revela. Longe dos clichês de Hollywood, onde heróis sobrenaturais ou governantes norte-americanos salvam o dia, “O Eternauta” eleva o povo à condição de protagonista. O herói aqui não é um indivíduo com superpoderes, mas sim a união do povo, sua resistência coletiva diante da adversidade. Essa perspectiva é um toque sutil, mas extremamente poderoso, reforçando a ideia de que a verdadeira força reside na solidariedade e na capacidade de um grupo de pessoas se unir contra uma força opressora.
O Impacto Visual e a Imersão no Caos: Um Espetáculo Sem Medo
A produção de “O Eternauta” é, sem dúvida, um dos seus maiores primores. A série não poupa recursos para imergir o espectador em seu universo apocalíptico. Com takes amplos que revelam a cidade inteira, incluindo ícones como o estádio Monumental de Núñez, as ruas e avenidas da Argentina, a fotografia captura a vastidão do caos e a desolação que se abate sobre Buenos Aires. Essa escolha visual é crucial para o impacto da narrativa, pois permite ao público testemunhar o apocalipse acontecendo em tempo real, uma experiência que muitas obras do gênero costumam pular, focando no pós-evento.
A atenção aos detalhes é notável e contribui para a atmosfera pesada e realista da série. As cenas de trânsito paralisado, com carros abandonados e portas abertas, sugerem a urgência com que as pessoas tentaram escapar da neve tóxica. Mais impactante ainda é a decisão de mostrar os corpos das vítimas, transformando figurantes em elementos narrativos que acentuam a gravidade da situação e o peso da tragédia. Essa crueza visual, aliada a um tom gélido que faz o espectador “sentir frio” , demonstra a seriedade com que a série aborda seu tema, mantendo um peso perfeito e válido.
O Coração da Resistência: Personagens e Atuações que Cativam
O elenco de “O Eternauta” entrega atuações impecáveis, elevando a qualidade da produção a patamares impressionantes. A série não se apoia em grandes nomes de Hollywood, mas sim na força e autenticidade de seus atores argentinos, que “deram banho de interpretação”. O personagem Juan, interpretado por um diretor de cinema argentino, exemplifica a profundidade que se espera dos protagonistas em meio ao caos.
O mais interessante é a desconstrução do conceito de “herói” tradicional. Os personagens não são super-heróis musculosos, mas sim homens e mulheres de quarenta, cinquenta, sessenta anos, com suas limitações físicas, mas que demonstram uma coragem e valentia inabaláveis na resistência ao invasor. Cada um deles carrega uma história profunda e multifacetada, revelando camadas de complexidade que enriquecem a narrativa. Até mesmo as crianças presentes na série, como as duas ou três que aparecem, demonstram uma profundidade surpreendente, com os atores mirins dando conta do desafio. Essa abordagem humaniza a resistência, tornando a luta contra a opressão ainda mais palpável e inspiradora.
Os Monstros e o Design de Produção: Um Espetáculo Aterrorizante e Detalhista
Os antagonistas de “O Eternauta”, as criaturas alienígenas, são concebidas de forma a evocar tanto o horror quanto a simbologia da opressão. Descritas como aranhas com formato de besouro, essas figuras se movem em marchas “ploque ploque”, em centenas, gerando uma atmosfera assustadora e imponente. A maneira como essas criaturas operam — mordendo, embrulhando suas presas em teias para posterior consumo ou hipnotizando-as para desumanizá-las e transformá-las em trabalhadores dos alienígenas — reforça a metáfora do imperialismo que tira a humanidade do indivíduo.
Além dos seres, o design de produção da série é impecável. Cada elemento, desde os carros nas pontes e estradas até os prédios, é meticulosamente elaborado para criar um ambiente crível e imersivo. A atenção aos detalhes nas cenas, que são “uma mais bela que a outra”, contribui para a experiência sensorial do espectador, que pode até mesmo sentir frio ao assistir à série, dada a ambientação constante na neve. Esse cuidado estético e técnico demonstra o compromisso da produção em entregar uma obra de arte visualmente impactante.
O Legado do Autor: Uma Tragédia Que Ecoa na Ficção
A história de “O Eternauta” ganha camadas ainda mais profundas quando se conhece o trágico destino de seu autor, Héctor Germán Oesterheld. Em meio ao regime militar argentino (1976-1983), Oesterheld escreveu a obra com o objetivo de combater o imperialismo e a desumanização. Infelizmente, essa ousadia custou-lhe a liberdade e a vida. Ele foi sequestrado junto com quatro filhas e três genros, duas das filhas grávidas, e todos desapareceram, nunca mais tendo seus paradeiros revelados.
Esse contexto histórico e pessoal do autor adiciona um peso significativo à série. A crítica ao imperialismo, simbolizada pelos alienígenas, adquire um tom ainda mais sombrio e real. A série, com sua narrativa de resistência, torna-se um eco da própria vida de Oesterheld e da luta de muitos que sofreram durante o regime militar argentino. A mensagem de “O Eternauta” transcende a ficção, tornando-se um poderoso lembrete da importância da memória e da resistência contra a opressão.
Um Apocalipse Diferente: Humanidade em Xeque e a Loucura do Desconhecido
“O Eternauta” se distingue de outras narrativas apocalípticas por sua abordagem única do cataclismo. Diferente de apocalipses zumbis, o que presenciamos é um “apocalipse climático”, causado por uma neve altamente tóxica que mata ao toque. Essa premissa singular permite explorar as reações humanas em uma situação de precariedade extrema, sem saber o que esperar do amanhã.
A série habilmente retrata a loucura e o caos que se instalam quando a incerteza domina. Assim como em “Ensaio Sobre a Cegueira” ou “The Walking Dead”, “O Eternauta” explora como, em situações-limite, a sociedade pode se reorganizar em clãs baseados na força bruta, confiscando recursos e impondo novas ordens. A série mostra que a hiperatividade e a perda da razão são comportamentos muito próximos da realidade em eventos apocalípticos. A decisão de um personagem de trocar sua casa segura por um trailer em busca de um futuro incerto ilustra perfeitamente essa “loucura de não saber o que esperar amanhã”. Essa análise da natureza humana sob pressão é um dos pontos altos da série, tornando-a uma experiência reflexiva e impactante.